Saltar para: Post [1], Comentários [2], Pesquisa e Arquivos [3]

Delito de Opinião

Comer (8)

Matar saudades de chanfana em Coimbra

Pedro Correia, 05.11.22

Coimbra 1.jpg

 

Há petiscos que só consumo no local próprio. Espetada à madeirense, claro, na Madeira - em Câmara de Lobos comi uma inesquecível. Ensopado de borrego e pezinhos de porco de coentrada, apenas no Alentejo - recordarei sempre um manjar com estas iguarias no Luar de Janeiro, em Évora. Cataplanas é no Algarve. Leitão, só na Bairrada - nada de sucedâneos menores.

A melhor cabidela de pica-no-chão continua a ser a do pantagruélico Camelo, às portas de Viana. Para o arroz de polvo, com ou sem filetes do dito, vou ao Porto. Para o ensopado de enguias, opto pela Costa Nova. Se quero raia alhada, vou ao Carrossel, junto à praia da Cova Gala (Figueira da Foz). E nada bate o bacalhau à minhota do Chico, em Caminha. Nem o arroz de carqueja do meu Fundão. 

Lisboa possui a sua comida típica, ao contrário do que alguns supõem. As ervilhas com ovos, as pataniscas, o bacalhau à Brás, os peixinhos da horta, as iscas na frigideira. E não esqueçamos aqueles pratos que podem orgulhar-se de ter alcançado amplitude nacional, com ligeiras variantes regionais. Não esquecerei um magnífico arroz de pato no Cortiço, em Viseu, ou uma caldeirada à pescador em Peniche - almoço que se prolongou tarde adiante, amenizando um dia de chuva primaveril. 

 

Coimbra 2.jpg

Por vezes a nostalgia de determinado acepipe vai apertando. Acontece-me mal chegamos a Janeiro, quando inicio a contagem decrescente para a época da lampreia, já com o roteiro traçado.

Confesso: às vezes estou anos sem matar saudades. Acontece-me com a chanfana: só consigo comê-la em Coimbra. E sei exactamente onde quero ir para o efeito.

Venho de lá agora. Desde Agosto de 2019 que não pernoitava na cidade do Mondego: a pandemia baralhou-me vários planos, até no campo gastronómico. Nem sabia que o Zé Manel dos Ossos, durante anos um dos emblemas da restauração na baixa coimbrã, tinha fechado de vez. 

Mas apontei para o Cantinho dos Reis, ali bem perto, no Terreiro da Erva. O que eu queria era a chanfana, três anos depois. E em boa hora lá voltei: continua a recomendar-se.

                                                     Coimbra 4.jpg

O afável proprietário, agora com 78 anos, fez as honras da casa. Lá dentro, pois o espaço exterior estava invadido pela turba estudantil em dia de celebração académica. Disse-lhe ao que vinha, o que lhe iluminou a face num sorriso: «Haja alguém capaz de apreciar o que é bom. Hoje aparece cada vez menos gente a pedir chanfana. Preferem uma estrangeirice qualquer.»

O cozinheiro é de Poiares e confecciona o bicho da forma clássica. Vem macio e suculento e bem apaladado. Percebe-se que recebeu tratamento condigno na cozinha. Servido em dose generosa, com batatinhas e couves cozidas e apresentadas à parte. Como manda a sabedoria antiga.

Pede mastigação prolongada: só assim saboreamos devidamente.

Coimbra 3.jpg

Regalei-me, como diria o Eça. O simpático anfitrião até me fez o favor de ligar a televisão para ver a bola, mas nessa noite eu estava mais virado para a arte gastronómica do que para a devoção futebolística. E lá me pus à conversa com ele sobre as tradições que se vão perdendo à mesa nacional.

«O senhor nem imagina, agora só querem picanha...»

Eis que chega uma família: pai, mãe, dois filhos. Mal olham para a ementa: é isso mesmo que encomendam. Picanha.

Eles não sabem nem sonham como é bom comer chanfana.

Até já, Cantinho dos Reis. Não tenciono estar mais três anos sem aí voltar.

68 comentários

Comentar post