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Delito de Opinião

Com olhos de ler

Pedro Correia, 26.06.19

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No último mês e meio, li dez romances portugueses do século XX. Em quase metade desses livros, muito celebrados e enaltecidos, o trabalho está totalmente ausente. As personagens principais são homens, vagamente intelectuais, que nada fazem senão arrastar-se de restaurante em restaurante e de bar em bar em Lisboa enfardando e decilitrando, sem visíveis meios de subsistência. Intitulam-se escritores sem escreverem uma linha, denominam-se pintores sem um só quadro para amostra. Falam pelos cotovelos e só buscam o prazer fácil, embora não grátis: as mulheres, nestes marcos da nossa ficção, são todas putas ou para lá caminham. O que não parece depreciar tais obras aos olhos do feminismo contemporâneo. 

Em jeito de balanço provisório das mais recentes leituras, por contraste, concluo que a chamada corrente neo-realista, ao traçar uma clara demarcação não apenas ao nível das ideias mas também da escrita, foi um movimento mais importante do que o cânone dominante nas últimas décadas reconhece. Não tanto pelo seu inquestionável valor documental ou por haver enriquecido o registo escrito da nossa língua com as múltiplas tonalidades do vocabulário oral, mas por ter trazido o trabalho, como pilar da dignidade humana, para as ociosas páginas daquilo a que se convencionou chamar a nossa melhor literatura. As pessoas comuns, sem nomes brasonados, residentes na província ou na periferia da capital. Gente que irrompe nas páginas de obras-primas hoje injustamente esquecidas, como Casa na Duna, de Carlos de Oliveira, ou Cerromaior, de Manuel da Fonseca, que alguns omitem nas suas listas muito tendenciosas de títulos imprescindíveis do romance português do século XX. Uma delas, salvo erro, não consta sequer do copioso rol de títulos incluídos nas 788 páginas de recomendações do Plano Nacional de Leitura.

É tempo de livros como estes serem revalorizados. Sem anátemas ditados pelo preconceito estético ou político. E de os apreciarmos pelo seu valor intrínseco, não por constituírem armas de arremesso em ultrapassadas contendas ideológicas. 

2 comentários

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    Anónimo 27.06.2019

    Gostei tanto de saber que o jpt achou o Ernestina magnífico, tal como eu. Sempre que posso, falo desse romance que tanto me marcou, que li de um fôlego para ver como acabava, para logo de seguida voltar a lê-lo com mais calma e melhor saborear certas passagens.
    Talvez o melhor romance português que li neste século.
    O Memorial do Convento foi o meu primeiro Saramago (foi-me emprestado por uma amiga) e foi um deslumbramento. Mal o acabei fui logo comprar um para mim, bem como todos os outros que ele já tinha escrito. Li-o sem preconceitos (não sabia nada, absolutamente nada da vida dele), li-o com interesse puramente literário.
    E fiquei "agarrada" ao escritor.
    Mais tarde, aprendi a admirar o homem e a compreender muitas das suas atitudes, não todas, mas quase todas.
    E é isto.

    Maria
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