A minha geração foi abalroada pela heroína, e nem preciso de juntar grandes detalhes memorialistas para o comprovar. Não naquilo da implosão de muitos dos heróis (Coltrane, Hendrix, Joplin, Morrison e tantos outros). Mas no descalabro de amigos e vizinhos, desde os finais dos 1970s, muitos que por então se foram, alguns até de propósito, outros que se rearranjaram, "sabe Deus" com que esforços, e tantos destes para virem morrer no cabo dos seus cinquentas, dos fígados devastados. Para quem não se lembra, ou faz por isso, bastará lembrar a Lisboa dos 1990s, carregada de já velhos junkies penando pelas ruas, arrumando carros, perseguindo as carrinhas da metadona...
Entretanto, nós aqueles que havíamos seguido doutro modo, uns mesmo saudáveis, outros nos mares de álcool apropriados à nossa nação de marinheiros, ou nas multiculturais ganzas, quanto muito aqui e ali polvilhadas de uma chinesa "só para experimentar", e mesmo alguns já adult(erad)os como aburguesados encocaínados, fomos crescendo e procriando. Nisso deparando-nos com aquele "saber de experiência feito" do nosso Duarte Pacheco Pereira, e nisso a angústia do que viria a ser com os nossos queridos. A heroína perdera o prestígio social, ainda que resista no mercado, mas haviam surgido várias novidades, sintéticas, até legais.
(Lou Reed, David Bowie, I'm Waiting for the Man, Live, 1997)
Ora nesse longo - e preocupante - entretanto, por mais angústias que houvesse, ninguém se lembrou de exigir a Lou Reed que apagasse esta célebre "I'm Waiting for the [my] Man" (ou aquela "Heroin" ou tantas outras, como as que me são fundamentais "Caroline Says" I e II). Ninguém, com dois dedos de testa, quis que amputasse ele o seu percurso, a sua arte, a sua refracção poética do que vivia, em nome de qualquer "causa", justa ou espúria que fosse. E também por isso, para que não me digam que também então se "cancelavam" textos, aqui deixo uma versão feita em 1997, trinta anos depois dos Velvet Underground terem irrompido e rompido com quase tudo o que vigorava. Não é uma das melhores, apesar de Bowie, e por isso para uma de píncaros deixo abaixo uma majestosa do John Cale, um pouco mais antiga.
Pois mesmo com a maldita heroína a rebentar à nossa volta o que se pedia e pede aos nossos é que a evitem - "por favor, não entres num carro onde haja gente com os copos, não uses químicos, por favor, só isso!". Mas também "ouve Lou Reed [e John Cale], e especialmente aquelas Caroline Says I e II, já agora". E não que se apaguem textos que não a denunciem. Porque os poetas não se amputam. E porque são tão mais importantes quando dizem aquilo que "não fica bem", para não estar eu aqui com prosápias ensaísticas.
Lembro-me disto ao ler que o magnífico Chico Buarque anunciou a "reforma" (o cancelamento, para ser explícito) da bela "Com Açúcar, Com Afecto", devido às pressões feministas. Encho-me de compaixão pelo ancião.
(John Cale, "I'm Waiting for the Man, Live, 1984)
(Postal para o meu Nenhures - e mais ao seu estilo)
16 comentários
Vento 29.01.2022
Estes gajos bloguistas cheiram o pó adulterado. Uma suzi quatro em pele e também em pêlo é que está a dar, e no inferno. Aqui vai um postal de 2010: https://www.dailymail.co.uk/tvshowbiz/article-1311587/Suzi-Quatro-goes-hell-leather-tight-catsuit-Elvis-Presley-tribute-gig.HTML
Estes gajos bloguistas envelhecem e só lhes dá para pensar em pataniscas e outras comezainas.
Melhor que viagra é uma mulher. Mas agora deu-lhes para serem feministas e é muito provável que aconteça uma desgraça ecológica. O mundo será para os animais.
Penso que foi no ano passado: os Rolling Stones decidiram deixar de tocar o "Brown Sugar" nos concertos porque "não estão para chatices". Quando um grupo com a dimensão dos Rolling Stones se autocensura por "não querer chatices", sabemos que os bárbaros canceladores venceram.
Adolfo Mesquita Nunes, Ana Lima, Ana Margarida Craveiro, Ana Sofia Couto, Ana Vidal, André Couto, Bandeira, Cláudia Köver, Coutinho Ribeiro, Fernando Sousa, Francisca Prieto, Inês Pedrosa, Ivone Mendes da Silva, João Campos, João Carvalho, José António Abreu, José Gomes André, José Maria Pimentel, Laura Ramos, Leonor Barros, Luís M. Jorge, Marta Caires, Patrícia Reis, Paulo Gorjão, Rui Herbon, Rui Rocha, Tiago Mota Saraiva