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Delito de Opinião

Colonizar Marte

João André, 10.06.20

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Recentemente a SpaceX tornou-se a primeira empresa privada a enviar seres humanos para a Estação Espacial Internacional (ISS). Foi um feito que abre as portas a uma nova era de exploração espacial, onde certo tipo de operações poderá passar para a mão de privados e libertar a NASA (e outras agências públicas) para se concentrar em objectivos mais científicos e menos mundanos e reduzir o custo das operações de suporte (a SpaceX, bem como Blue Origin e outras, fazem os seus lançamentos a custos bem mais baixos que a NASA, ESA ou Roscosmos).

No entanto, o objectivo declarado de Elon Musk, o principal responsável pela SpaceX (e várias outras empresas), é o de levar seres humanos a Marte e criar lá as primeiras colónias. É um objectivo admirável e que um dia será possível, mas quando penso nele a longo prazo, penso que há um erro de cálculo no conceito de Marte como "nova casa" para os seres humanos.

Marte é um planeta com cerca de 53% do tamanho da Terra e apenas 10% da massa do nosso planeta. A atmosfera de Marte tem apenas 0,6% da pressão da da Terra e é composta em 95% de dióxido de carbono. A atmosfera está directamente relacionada com a massad o planeta, dado que a sua espessura depende imenso da gravidade que o planeta exerce. A nossa atmosfera não existe por haver alguma barreira por cima do nosso planeta que evita que os  gases escapem. Tal como nós próprios, os gases que compõem a nossa atmosfera mantêm-se presos ao planeta porque a gravidade não os "deixa" escapar. No caso de Marte, tal não é possível.

Isto é importante, porque significa que, com uma massa apenas 10% da terrestre, Marte não tem gravidade suficiente para manter uma atmosfera terrestre. E não se trata de fornecer apenas o oxigénio suficiente (presente apenas em cerca de 21% na nossa atmosfera), mas é também necessário que a sua pressão parcial (i.e., a sua contribuição específica para a pressão total) esteja dentro de um intervalo específico e que a pressão total não seja excessivamente baixa. Não vou agora procurar os valores, mas a pressão total é certamente superior aos 0,6% da atmosfera marciana.

Marte tem imensas quantidades de CO2 sequestradas nas rochas e água congelada nos pólos (e provavelmente subterrâneamente), as quais podem ser usadas para produzir oxigénio molecular, O2, para respiração. Contudo, oxigénio apenas não chega para uma atmosfera sustentável. Seria necessário adicionar outros componentes inertes para permitir a vida humana e de outros animais (os quais seriam necessários para obter um ecossistema). Em sistemas isolados (estações espaciais, tanques de mergulho, submersíveis), azoto ou hélio são usados para sumplementar a pressão (argon ou outros gases nobres poderiam ser usados sob certas condições). Não se sabe se Marte terá quantidades apreciáveis de azoto mas hélio terá provavelmente escapado o plaeneta devido a ser tão leve.

Tudo isto tem todavia dois obstáculos. Um deles é potencial, o outro será mais real. O potencial é o risco de incêndio e explosão numa atmosfera rica em oxigénio. O oxigénio, não sendo inflamável, permite o fogo. O hidrogénio, que é altamente inflamável, é completamente inofensivo numa atmosfera sem oxigénio. Na nossa atmosfera, o azoto (que é inerte e provoca asfixia* se presente em concentrações excessivamente elevadas) tem duas funções importantes (do nosso ponto de vista): aumentar a pressão atmosférica e garantir que o oxigénio não está em concentrações tão altas que os fogos se tornem incontroláveis. É por isso que é usado para cobrir tanques de materiais inflamáveis (em tanques de combustível nos aviões, por exemplo) para evitar que os mesmos provoquem fogos. Numa atmosfera terraformada marciana com concentrações de, por exemplo, 60% de oxigénio, o risco de incêndio seria acrescido. O segundo risco é mais real: mesmo que consigamos criar uma atmosfera respirável para viver de forma sustentável na superfície de Marte, isto nunca duraria muito. A gravidade reduzida (cerca de 38% da terrestre) não teria capacidade para "segurar" a atmosfera e esta escaparia para o espaço. É no entanto provável que a velocidade a que isto sucedesse (terá sucedido no passado ao longo de milhões de anos) tornasse este obstáculo irrelevante.

Antes desta fase haveria contudo que aquecer o planeta. A solução é simples e existe também na Terra: aumentar a quantidade de CO2 na atmosfera para aumentar o efeito de estufa. Falamos muito do efeito de estufa causado pela libertação de CO2 pelos seres humanos, mas esta parcela do gás é relativamente pequena. O seu efeito é devido ao desequilíbrio que causa no ecossistema. Só que sem CO2, não haveria vida na Terra. A sua presença foi necessária para aquecer o planeta e evitar que congelasse. Sem o CO2, a água teria provavelmente congelado e a Terra seria hoje um planeta gelado. Em Marte poderíamos começar por libertar o CO2 das rochas (basta aquecê-las) para iniciar o aquecimento. Mais tarde poderíamos separar o carbono do oxigénio (essencialmente numa fotossíntese "sintética") para criar a atmosfera desejada. A potencial dificuldade residiria no equilíbrio de absorção de CO2 pelas rochas. Se o CO2 fosse libertado, haveria grande possibilidade de ser reabsorvido novamente (imaginemos uma esponja cheia que é espremida mas colocada de novo em cima da água que saiu). Provavelmente é possível resolver esta questão, mas não sei qual o processo.

Temos finalmente dois últimos obstáculos. Um deles é novamente a (fraca) gravidade de Marte. O corpo humano está preparado para viver em 1G. Em gravidades mais fracas perderíamos densidade óssea e massa muscular e os seres humanos que ali se estabelecessem ou desenvolvessem seriam mais fracos que os da Terra. Assim sendo, também teriam dificuldades em mais tarde colonizar planetas mais massivos (numa hipotética expansão espacial). O outro é a falta de campo magnético. Marte é fustigado por ventos solares que removem a atmosfera e aumentam a radiação à superfície do planeta para níveis insustentáveis para a vida humana (a longo prazo). Há ideias sobre como criar um campo magnético, mas não seriam fáceis nem baratas.

É por isso que não creio que alguma vez os seres humanos decidam estabelecer-se em Marte. Criar estações no planeta, potencialmente até para servirem como estações de partida para outros pontos do espaço, penso que será possível. Já vida permanente no planeta, com uma atmosfera e ecossistema semelhantes à Terra, isso parece-me inalcançável para uma civilização que não fez ainda uma segunda ISS nem voltou a enviar astronautas sequer ali ao virar da esquina (à Lua). Parece-me portanto que a ambição de Elon Musk, de morrer em Marte, será impossível a não ser que se despenhe na atmosfera.

Veremos onde a engenhosidade humana nos levará.

 

* - o azoto em alemão e holandês é chamado de Stickstoff e stikstof, respectivamente. A tradução literal é algo como "matéria de asfixia". A razão para isso é que, em presença de concentrações muito elevadas de azoto (e baixas de oxigénio), o ser humano tende a asfixiar sem o notar. O cérebro humano não terá capacidade de notar a falta de oxigénio como tal, apenas começa a entrar em funções reduzidas, e uma pessoa exposta a tal atmosfera pode morrer sem nunca notar o perigo. É um gás que asfixia pela falta de oxigénio, não por ser tóxico. Nos locais onde é usado, há treinos de segurança específicos sobre como lidar com ele.

 

4 comentários

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    João André 10.06.2020

    Não sei até que ponto uma explosão nuclear faria esse efeito. A atmosfera é tão fina que as ondas de choque, fracas que fossem, poderiam acabar com ela, mesmo à medida que a formassem. Nunca gosto de ver explosões nucleares no espaço. Sem atmosfera para transmitir o pulso térmico e a onda de choque, sobra apenas a radiação, que tem efeitos díspares dependendo do material. Parece-me no entanto um desperdício de energia. Mas devem-me falhar alguma coisa na minha lógica.
  • Resumidamente Elon Musk defende que as calotes polares seriam vaporizadas e de seguida surgiria uma atmosfera. Não é a minha praia
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    João André 12.06.2020

    Mas depois da explosão talvez aparecesse uma (praia) por lá
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