Clássicos para a Prainha (IV)
Hesíodo: Os Trabalhos e os Dias
Se dúvidas houvesse quanto às perturbações que o funcionamento irregular de um sistema judicial pode causar no espírito de um indivíduo são, uma leitura de Hesíodo seria o suficiente para as dissipar. Um agricultor humilde perde, por subversão da Justiça, uma causa; e no momento seguinte está a descrever as origens do universo em hexâmetros dactílicos. Assisti a internamentos forçados por bem menos do que isso.
As atribulações de Hesíodo começam quando Perses, seu irmão, o arrasta para tribunal sob pretexto de discordar das partilhas da herança paterna, apropriando-se de um monte de ovelhas – julgo que se diz “um rebanho”, mas não estou seguro – através de uma técnica arcaica de corrupção envolvendo moedas e um par de mãos (aqui o pundonoroso leitor, imaginando com horror um corrupto juiz beócio do século VIII a.C., passa as costas da mão na larga testa suada).
Hesíodo recupera da perda das ovelhas, mas Perses desbarata o produto do seu triunfo forense em manga erótica, linhas de valor acrescentado, raspadinhas, coisas assim, e vê-se forçado pela deusa da destituição – decerto havia uma na Grécia – a recorrer a Hesíodo. Timidamente sugere um depósito na conta bancária, pode até ser cheque ou vale postal, mas o irmão (que em todo o caso, como bom rural que é, desconfia de bancos, sem razão, inteiramente sem razão) adopta uma postura entre o vingativo e o didáctico. E redige para Perses Os Trabalhos e os Dias.
As dicas de Hesíodo relativas à lavoura, e mesmo algumas de índole mais pia – assim de repente lembro-me daquela em que exorta Perses a jamais verter águas em pé virado para o sol –, quebram o gelo em qualquer festa; mas é ao mito de Pandora que as pessoas tendem a achar mais graça, mesmo as mulheres, as cujas Hesíodo coloca ao nível moral da barata. Pandora foi a primeira mulher, moldada à imagem das deusas imortais com terra e água por Hefesto, o deus coxinho, e dotada pelos restantes olímpicos de todos os atributos – sem esquecer a perfídia, a mentira, etc. Ela era o castigo divino por o titã Prometeu ter roubado o isqueiro a pai Zeus para o dar a uns homens que mal conhecia sem lhes cobrar sequer um cêntimo. Não há cigarros grátis.
Não direi que Hesíodo, lá por execrar as mulheres, aprovava o género masculino. Ele descreve as cinco idades do homem – a de ouro, em que o Windows instalava actualizações apenas quando não se estava a precisar do computador e os homens (lembre-se, não havia mulheres) eram tão felizes que morriam como que adormecendo; a de prata, quando a infância durava cem anos, após o que se falecia rapidamente por falta de cobertura do seguro médico; a de bronze, com gente tão violenta que mal nascia ia direitinha para o Hades; a dos heróis, com as suas guerras de Tebas e de Tróia e reformas douradas na ilha da Bem-Aventurança; por fim, a de ferro, a sua, dele, Hesíodo, a tal de Prometeu e do fogo, tão má que, enfim, perdoe, acho que não sou capaz de falar sobre isso.
Nem tudo está perdido, porém. É certo que 30 mil espíritos nos vigiam, que o olho de Zeus tudo vê e que a Justiça, sua filha, anda à coca (não literalmente) dos que procuram vencer causas nos tribunais através de estratagemas. O importante é ser-se íntegro, perseverar no trabalho e sobretudo ter cuidado, muito cuidado (não pergunte) com o dia 5 de cada mês.