Clássicos para a Prainha (III)
Ovídio: A Arte de Amar
Ninguém sabe ao certo por que razão Augusto decidiu o exílio de Ovídio. O próprio poeta, chorando-se lá nas berças (hoje romenas) onde o imperador o enfiara, era tudo menos claro: "carmen et error", dizia a quem o queria ouvir no único café-mercearia da terra, apenas isto, “um poema e um erro”, após o que pedia "uma couve trácia", o que os empreendedores citas locais aprenderam a resolver vendendo-lhe curgetes (os trácios comerciavam apenas em lacticínios e engraçados quebra-cabeças em freixo). Tristes dias que Ovídio gastou escrevendo pungentes cartas aos influentes, Augusto incluído, e posando para um quadro que Delacroix viria a expôr no Salon de 1859, “Ovídio entre os Citas”, representando o contraste entre barbárie e civilização, e que Baudelaire achou “um bocadinho manhoso, mas pronto” em termos de perspectiva.
Tudo parece indicar que a razão para o castigo foi a publicação em Roma, dez anos antes, de A Arte de Amar, um manual de auto-ajuda algo risqué. “Caramba!”, ouço-o exclamar, “exilar o pobre homem tanto tempo depois?” Repare, mavioso leitor, era na viragem para o século I, tudo tão lento, qual Internet, Roma era gigantesca e desordenada e espraiava-se em ruas sinuosas, estreitas e fétidas onde um carteiro não se podia arriscar sem periclitar a própria vida, não pelo salário mínimo; e os correios, por surpreendente que isso hoje nos possa parecer, estavam mais empenhados em vender brindes e cartões de boas-festas para a Saturnália do que em entregar cartas, função que não lhes é natural. Last but not least, César há-de ter sentido necessidade de moralizar os romanos, os cujos à época, diz-se, andavam a sacrificar um bocadinho no altar do deboche e isso é que não podia ser.
Como a Gália, o livrinho é composto de partes três, sendo as duas primeiras para homens (Ovídio ensina apenas os pobres, porque aos ricos, diz, basta-lhes ter dinheiro – aparecesse Homero em pessoa, acompanhado pelas nove musas, em casa de uma pretendente e não passaria do alpendre por não ter um tostão). A terceira parte é dedicada às jovens, provavelmente porque o nicho estava lá e não era desprezível; as mais velhas, que o poeta faz desejáveis pela sua experiência, não precisavam das suas lições.
Alguns dos conselhos ao género masculino são talvez o que se esperaria: anda lavadinho mas não compostinho, não permitas que te protrudam pêlos do nariz, não penses que obterás coito abeirando-te de uma jovem e convidando-a abertamente. Outros afirmam a convicção do poeta de que o amor é uma forma de guerra: não deixes que a tua expressão mostre que estás a mentir, se ela flirtar com outros, aguenta, se te gabares aos amigos dá nomes falsos às conquistas, esconde as tuas escapadinhas. Há mais interessante do que isto, mas porquê estragar-lhe a leitura? Deixe apenas que diga que no que respeita ao sexo propriamente dito, e desculpe se demorei tanto a chegar ao ponto, as coisas são muito claras. No sexo, garante Ovídio, vive a deusa da concórdia e no sexo nasceu a deusa da paz. Não vai dizer que não é bonito, ou vai?
Já as técnicas de sedução de A Arte de Amar levariam hoje o pretendente a várias condenações por assédio, tentativa de violação, stalking e outros crimes para os quais não encontro definição legal adequada. Também quando Ovídio sugere às mulheres que controlem o mau génio e não arranhem nem piquem as servas com alfinetes quando estas as penteiam, não vão elas derramar-lhes lágrimas nos cabelos e votar às divindades infernais a cabeça cujas mãos seguram, as coisas ficam um bocadinho sinistras. Ou quando o poeta se interroga se não será a visão das manchas de sangue troiano nas mãos mal lavadas de Aquiles que alimenta a concupiscência da sua concubina, Briseida. Mas isso, suponho eu, é apenas o século I a falar.