Clara Gema do Ovo (4) - A Normalidade
Ficar em casa doente, numa caminha quente e paparicada, sabia pela vida. Ficar em casa fechada quando lá fora se cantava na rua, havia lágrimas, sorrisos , música, alegria e abraços, era pura tortura, mas rapidamente tudo foi regressando à normalidade.
Normalidade é uma palavra com uma espécie de aura positiva, mas as normalidades têm tantas vezes tão pouco do dito “normal". Foi o que aconteceu no dia em que regressámos ao liceu. As alunas não traziam as batas vestidas, nem as mochilas com livros, nem os cabelos presos, nem os sorrisos forçados… muitas trouxeram instrumentos musicais e por todo o lado se entoava a Grândola Vila Morena. A Clara estava como eu, sentada nos degraus que levavam ao pavilhão de ginástica e com a bata atada à cintura. Falávamos do que se sabia pelas notícias e das novidades do Liceu. Queriam sanear a professora de história e a de Inglês. Sanear. Palavra que na altura ligava de imediato a esgoto e que passou a fazer parte do léxico liceal no pós Revolução. Tocou para a entrada. Levantámo-nos para ir para a sala , mas fomos das poucas a fazê-lo. As contínuas vieram ao pátio e instigaram ao cumprimento, mas estava calor, não apetecia nada e a beira Tejo era já ali em baixo. Aquele dia passou-se no limbo da revolta pela inacção. Os que se seguiram foram mais do mesmo, até que tudo aqueceu. Até o tempo.
Um grupo de alunas dirigiu-se à esquadra do Calvário e pediu um megafone emprestado. Então, debaixo de um sol escaldante e envolvidas no ambiente e no som das palavras de ordem, votámos greve geral de alunos e fomos todas para a “praia”. Era ver meninas bem educadas de calças arregaçadas, ou sem calças ou até em cuecas e soutien , naquela estreita língua de areia ao lado da Torre de Belém, a então chamada “Praia da Torre do Pé Descalço", numa espécie de alienação colectiva, como se fora a primeira vez que viam mar. Nem sei se os nossos pais alguma vez souberam desta maluquice.
O ritmo manteve-se frenético até às férias grandes, com as notas a descambar miseravelmente, mas no fim, com a nova média de 9,5 valores para transitar de ano e candidatar-se à faculdade, foi o autêntico paradigma da festa da vida.
Nesse ano os meus pais cumpriram uma promessa: deixaram-me ir a Londres. Na companhia do Vitinha, da Lena e da Guida, aquela família que nós escolhemos e que foi sempre a nossa, num belo dia de Agosto saí no “Eagle" do Cais da Rocha do Conde de Óbidos até Southampton. A viagem demorou três dias. Vomitei-os todos. Fiz os dezasseis anos a bordo com festejos por parte dos amigos e da tripulação, mas estava mais interessada na localização do WC mais próximo.
Londres era diferente apesar da chuva em pleno agosto e da monocromia pintada pelo nevoeiro, mas era Londres e só podia ser fantástico, . Foram duas semanas de uma viagem inolvidável, saindo depois para Paris e Madrid.
De todas as paragens, escrevi postais à Clara, para que podesse viver comigo parte desta deslumbrante aventura.
O regresso encontrou tudo no alvoroço da normalidade de 1974.