Cinquenta anos depois falta fazermos a revolução
(créditos: daqui)
Os portugueses e as suas instituições celebram em 25 de Abril o Dia da Liberdade. Eu chamar-lhe-ia antes, como os italianos, o Dia da Libertação (“Festa della Liberazione”). Muitos, mais novos, perguntarão que libertação é essa; e porquê. Outros, mais velhos, olharão para a data como mais uma simples efeméride referida a qualquer coisa que aconteceu num passado cada vez mais distante e que de tempos a tempos é recordada nas escolas, nos jornais, nas rádios e televisões. Não mais do que isso.
Há cravos vermelhos, discursos, fanfarra, cantoria e romaria. Há festa.
E depois, a seguir à festa, voltam todos à escola, os que a frequentam, ao trabalho, à inflação, ao desemprego, às doenças, aos subsídios, ao futebol, aos Santos Populares, ao fado, aos tribunais e às praias. Outros voltam às ruas para reclamarem por melhores condições de vida, um ambiente mais saudável, cidades mais sustentáveis, reivindicarem ajustamentos salariais, melhores carreiras, dignificadas e revalorizadas, por mais feriados, mais habitação, mais creches, mais saúde, mais igualdade. Querem mais, sempre mais, cada vez mais. E, no entanto, são incapazes de lutar pelo básico, de orientar as suas vidas por um verdadeiro altruísmo que nos liberte das amarras criadas à sombra da libertação, à sombra de Abril.
Quem viveu, quem ainda conheceu, quem se recorda do muito que aconteceu, em especial a partir da ocupação dos territórios portugueses na Índia e do início das guerras coloniais, do que foram esses anos que antecederam o 25 de Abril de 1974, estará hoje menos sensível a grandes mudanças. Dá a democracia – a verdadeira, não a que outros dizem “que funciona”, a que alguns ditos “democratas” se adaptam com grande facilidade, exultando-a, e que não passa de uma ditadura que distribui gelados quando não está ocupada a distribuir máscaras, controlar, vigiar, reprimir, prender e punir – como adquirida e cumprida com a bênção ritual e regular de formalidades. Tudo se esgota no poema decorado, lido, declamado e apregoado até à náusea, no jantar de confraternização, no entoar compassado e ritmado da canção.
Esquecendo, a avaliar pelas pérolas que se ouvem nalgumas entrevistas ou em concursos televisivos, que há quem confunda Otelo com um hostel ou Salazar com Soares, não sabendo quem foi Salgueiro Maia, desconhecendo que Ramalho Eanes foi Presidente da República. Nada disso seria grave não fosse dar-se o caso de até o líder parlamentar de um partido estruturante do regime confundir Diogo Freitas do Amaral com Adelino Amaro da Costa. E teimar.
Os indicadores económico-sociais permitem-nos ver a distância a que estamos do Estado Novo e da primavera marcelista. Em 1975 as nossas estatísticas indicavam que havia 122 médicos por cada mil pessoas; em 2023 já eram 578 para os mesmos mil. Os enfermeiros eram 205, hoje são 783. A esperança média de vida era em 1970 de 67 anos. Em 2023 é superior aos 80. Em 1975 apenas 60% dos partos ocorria em hospitais e clínicas. Actualmente são 99,8%. O número de habitações mais do que duplicou. No início da década de 70 do século XX havia 53% de habitações sem água canalizada; em 36% não havia electricidade e 40% não tinha esgotos. Hoje não se constrói nenhuma que não tenha tudo isso. A taxa de analfabetismo era em 1970 de 25,7%, mas nas mulheres era superior a 30%. Hoje são 3,1% os analfabetos. É muito menos sem deixar de ser um número triste e avassalador. São mais de 250 mil os portugueses que não sabem ler nem escrever. A mortalidade infantil desceu colocando-nos entre os dez países mais seguros para se nascer. O número de estudantes no ensino superior aumentou sete vezes. A mulher adquiriu outros papéis. Muitas puderam deixar de ser parideiras militantes para abraçarem carreiras profissionais sendo ao mesmo tempo mães.
Quase tudo mudou. Muitos dirão que quase tudo mudou para melhor. Eu também.
Mas quando num país como o meu, o nosso, se verifica que em 1985 as mulheres recebiam um salário que era, em média, inferior ao dos homens em 23,2% nos cargos superiores, e em 2022 essa diferença aumentou para 25,6%, é porque há qualquer coisa que não está a funcionar. Há o dobro das casas. Porém, há mais de 80 mil famílias com carências habitacionais graves. E há mais de 700 mil habitações devolutas. Há dois anos, uma sondagem indicava que mais de 80% dos portugueses não estavam plenamente satisfeitos com a sua democracia. E o ano passado uma outra sondagem revelava que apenas dois em cada dez portugueses confiavam no Governo e na Assembleia da República. Nos vinte anos anteriores ao 25 de Abril de 1974, mais de um milhão e meio de portugueses emigrara. Segundo a ONU, em 2024 serão 2,3 milhões os portugueses nascidos em Portugal que vivem no estrangeiro. Não estamos a falar de filhos de emigrantes. Quanto ao estado dos tribunais e à situação do Ministério Público nem vale a pena falar. Acabaram os tribunais plenários, é verdade, mas a imagem que os portugueses hoje têm do sistema judicial é a de uma coutada atávica sem rei nem roque, ao serviço dos ricos e poderosos, das corporações e dos bandidos das seitas do regime, e em muitos casos entregue a gente frustrada que se preocupa com tudo menos com a realização da justiça em tempo útil. Há excepções? Há. Muitas. Há, felizmente, gente séria e decente. É para esses que escrevo. São os que me importam.
Gente séria e decente que com o apodrecimento do regime e das instituições não se revê com força nem poder suficiente para fazer a mudança a que todos aspiram. Porque os sonhos dos votantes do Chega, sendo portugueses como os outros, não são diferentes dos sonhos de quem vota no PSD, no PS, no IL, no BE, no PAN ou no PCP. Todos aspiram à mesma dignidade, ao mesmo bem-estar, a um tecto digno, à mesma decência, à mesma saúde, à mesma educação, à mesma segurança.
Perguntar-me-ão então que solução aponto para tão deplorável estado de espírito. Responderei dizendo que defendo uma revolução. Uma revolução na verdadeira acepção da palavra. Uma revolução integral. Não um golpezinho misericordioso num regime podre que se transformou numa festa bunga-bunga permanente para algumas famílias que engradeceram à sombra dos partidos. Uma revolução sem dó para com os quadrilheiros das juventudes partidárias que se assenhorearam do regime e tomam conta de uma casta de portugueses mansos que só sai à rua quando lhes cravam um ferro curto nos bolsos.
Uma revolução que leve por diante o que se começou em 25 de Abril de 1974. Uma revolução que preservando-nos a alma nos mude os costumes, os vícios, as manhas e as entranhas da mentalidade. Uma revolução que nos faça sair do estado de letargia em que nos colocamos. Uma revolução que abane os alicerces do sistema judicial, que a todos nos eduque nas virtudes do verdadeiro espírito republicano, que desfira golpes sem parar nas oligarquias partidárias, nos gangues que se apoderaram do regime, uma revolução que dê uma machadada no corporativismo, no exibicionismo da mediocridade, na falta de vergonha da ignorância, que construa um sistema fiscal verdadeiramente distributivo, sem manhas, que faça assentar a democracia num sistema eleitoral moderno e mais justo, que rasgue auto-estradas para o mérito, que premeie a intervenção cívica, que proteja quem tem de ser protegido, que seja implacável com os poderosos que falham e rigoroso com todos os outros. Uma revolução assente na ética política, no conhecimento e na sensatez. Uma revolução que não marginalize os melhores para premiar os mais espertos dos piores. Uma revolução digna desse nome, que afaste o medo que nos rodeia, que dê um pontapé na falta de coragem e no comodismo, uma revolução que não nos castre diariamente a identidade e faça de nós uns perfeitos eunucos cívicos, sempre aos saltinhos, sempre contentinhos com mais um subsídio e um golo do CR7. Uma revolução que não atire o bebé ao rio com a água do banho.
Está, pois, na hora de fazermos a revolução.
Cinquenta anos, para nós, portugueses, não é nada. Para a nação é muito tempo quando ainda está toda uma revolução por fazer. Quando há toda uma mentalidade para mudar. Quando há um país para amar e uma nação para honrar. Não percamos mais cinquenta anos. Comecemos hoje a revolução. Em casa, nas escolas, nos partidos políticos, nos sindicatos, nos quartéis, nas ruas. Antes que a nova fradalhada do regime crie a carreira de dona de casa.
(Hoje, no Ponto Final)