Chegar a comandante sem fazer recruta
Nem Trump nem Biden foram à tropa. Um alegando ter um calcanhar inflamado, o outro por sofrer de asma
Há 32 anos, cumpridos anteontem, saía da Casa Branca o último inquilino que fez tropa à moda antiga, participando em combates no campo de batalha. George Walker Bush, que combateu na II Guerra Mundial como piloto da força aérea norte-americana, participando em 55 missões nas Filipinas e no Japão em 1944 e 1945.
Depois dele, tudo mudou. O Presidente dos Estados Unidos é considerado "comandante supremo das forças armadas", mas quatro dos últimos cinco chefes do Executivo não prestaram serviço militar. E todos quantos tinham idade para combater no Vietname, na época em que a tropa ainda era obrigatória, evitaram ser mobilizados sob pretextos vários.
É o caso do novo-velho inquilino. Nascido em 1946, Donald Trump festejou o 20.° aniversário no auge da intervenção norte-americana na Indochina. Mas esquivou-se a vestir farda, com cinco adiamentos sucessivos - os quatro primeiros invocando a sua condição de estudante de Economia, o quinto alegando ter um calcanhar inflamado. Anos depois Trump gozou com o sucedido, garantindo já não saber em que pé teria o suposto problema. E gozou ainda mais, observando que «o seu Vietname particular» fora a trepidante vida nocturna de Nova Iorque, onde o risco de contrair doenças vénereas era elevado para alguém como ele.
Joe Biden foi outro "comandante-em-chefe" que nem a recruta cumpriu. Nascido em 1942, agiu exactamente como Trump: foi metendo papéis para o adiamento da incorporação por frequentar um curso de Direito. No fim, já formado, solicitou dispensa por sofrer de asma, livrando-se do Vietname. Ficou sine die na reserva territorial.
Bill Clinton, nascido em 1946, estudava também Direito quando atingiu a idade de ir à tropa. Antes, como bolseiro em Oxford, participara em manifestações públicas contra a guerra do Vietname. Alegadamente, uma cunha familiar terá contribuído para o safar da incorporação. Nunca envergou farda.
George W. Bush, um dos três presidentes nascidos em 1946, resolveu o problema de outra forma: evitou ser enviado para a Indochina incorporando-se na secção da força aérea da Guarda Nacional do Texas. A guerra, para ele, ficou muito longe. A mais de 13 mil quilómetros de distância.
O caso de Barack Obama é diferente. Nascido em 1961, tinha 12 anos incompletos quando terminou o serviço militar obrigatório nos EUA. Uma decisão da administração Nixon concretizada em Janeiro de 1973, antecedendo a retirada dos EUA do Vietname.
Este divórcio entre os inquilinos da Casa Branca e as forças armadas de que são nominalmente chefes é recente. Vinte e um dos primeiros 26 presidentes tiveram participação muito activa na vida militar.
No conjunto, três foram generais: George Washington (1789-1797), Ulysses Grant (1869-1877) e Dwight Eisenhower (1953-1961).
Andrew Jackson, William Henry Harrison, Zachary Taylor, Rutherford Hayes, James Garfield e Chester Arthur foram majores-generais. Franklin Pierce, Andrew Johnson e Benjamin Harrison foram brigadeiros. Thomas Jefferson, James Madison, James Monroe, James Polk, Theodore Roosevelt e Harry Truman chegaram a coronéis. Lyndon Johnson e Richard Nixon foram comandantes da Armada. Gerald Ford, comandante adjunto. Também John Kennedy (herói na II Guerra Mundial) e James Carter se destacaram na Marinha. Millard Fillmore serviu nas fileiras como major. Abraham Lincoln chegou a capitão do Exército - tal como John Tyler, William McKinley e Ronald Reagan.
Apenas 14 dos 45 presidentes não fizeram tropa - metade dos quais nos últimos cem anos. Nem sequer seguiram o exemplo de James Buchanan (1857-1861), que cumpriu serviço militar sem passar de soldado raso.
Noutros tempos, o incumprimento dos deveres militares num país com fortíssima tradição castrense como são os EUA, maior potência bélica do planeta, mancharia a reputação de um político. Não é assim nestas décadas mais recentes, como os exemplos de Clinton, Obama, Trump e Biden comprovam.
O que talvez ajude a explicar este facto: o Vietname foi o único conflito bélico com forte presença norte-americana que não beneficiou o currículo de nenhum político com verdadeiro sucesso. Pelo contrário, três que lá estiveram - o republicano John McCain em 1967-1973 (várias vezes condecorado devido ao seu comportamento heróico, incluindo o longo cativeiro em que foi submetido a torturas diversas) e os democratas John Kerry em 1968-1969 (três vezes condecorado como herói de guerra) e Al Gore em 1971.
McCain foi derrotado por Obama na corrida presidencial de 2008. Kerry perdeu contra Bush nas presidenciais de 2004. Gore, vice-presidente com Clinton entre 1993 e 2001, sofreu uma derrota tangencial em 2000, também frente a Bush. Confirma-se: o Vietname pode ser matéria boa para filmes e séries, mas não é trunfo político. Daí Trump gozar com o tema.
Resta ver se ele, que nunca fez tropa, alguma vez hesitará em enviar os jovens de hoje para palcos de guerra.