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Delito de Opinião

Chamar as árvores pelos nomes

Pedro Correia, 27.09.18

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Conversa de circunstância com um amigo. Falamos de fogos florestais, ele avança com imensas certezas sobre o assunto – eucaliptos a rodos, pinheiros até dizer basta, necessidade de replantarmos espécies autóctones. Ando cansado destes polémicas sazonais, sobretudo quando protagonizadas por citadinos que se arrogam no direito de iluminar os ignaros campónios. Mas ainda lhe confesso o meu espanto pelo facto de o pinheiro bravo, presente na paisagem portuguesa pelo menos desde o século XIII, ainda não ser considerado “espécie autóctone”, acompanhada do respectivo atestado de pureza racial. É escusado: lá recita ele a ladainha. Há que plantar azinheiras e carvalhos e nogueiras e tal.

Conversamos numa das principais avenidas de Lisboa enquanto a tarde vai caindo, um ser vivo alto e esguio serve-nos de muda testemunha. “Sabes como se chama esta árvore?”, pergunto ao meu amigo. Encolhe os ombos e confessa, aparentemente esquecido do que proclamara pouco antes: “Não sei o nome de quase árvore nenhuma.”

É um choupo negro, presença habitual nas artérias alfacinhas: dizem que absorve muita poluição, sendo portanto um discreto aliado das nossas vias respiratórias. Jamais me habituarei à tradicional aversão lisboeta perante as árvores. Que sujam, que atraem pássaros e insectos, que tapam o sol, que provocam humidade, que fazem levantar passeios: só escuto queixas. Por vontade de grande parte da população, Lisboa ultrapassaria Atenas no triste primeiro posto de capital menos arborizada da Europa. Restariam umas tantas para os lulus depositarem excrementos em seu redor, como diariamente sucede em centenas de recantos urbanos, nisto em tudo equivalentes a cenários de terceiro mundo.

Volta e meia deambulo pelo Jardim do Campo Grande, bem perto da minha casa, revisitando árvores que se me tornaram familiares. As casuarinas, que logo me evocam paisagens orientais. Um belo cedro do Líbano, com o seu inconfundível recorte. Os vastos plátanos onde se acoitam os estridentes e capitosos periquitos-de-colar. A solitária gravília de matriz australiana que um dia ali descobri com gosto e espanto.

Desgosta-me que as autoridades municipais não desenvolvam campanhas pedagógicas destinadas a aproximar os cidadãos do mundo vegetal. Começando pelas crianças, que deviam aprender a chamar as árvores pelos seus nomes. Seria fácil e até divertido ensinar-lhes que a folha de uma olaia, por exemplo, tem a forma de coração – talvez por isso alguns lhe chamem árvore do amor. Ou que a folha da ginkgo, de importação japonesa mas já abundante por aí, apresenta a forma de um leque. Ou que a ameixoeira-de-jardim tem belas folhas acastanhadas. Ou que os castanheiros estão cobertos de ouriços nesta época do ano.

A propósito: a folha do elegante choupo negro é muito semelhante ao símbolo de espadas nas cartas de jogar. Digo isto ao meu amigo com a certeza antecipada de ser algo que ele nunca fixará.

 

 

Texto publicado há dias no blogue Imprecisões, correspondendo a um simpático convite da Alexandra.

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