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Delito de Opinião

Centenário

Pedro Correia, 27.05.23

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«As dificuldades são também um desafio. Não têm de ser sempre um obstáculo.»

Henry Kissinger, The Economist (Maio de 1923)

 

Viveu muito, leu muito, viajou muito, conheceu muito.

Ensinou muito - e continua a fazê-lo, com plena lucidez intelectual, neste dia em que celebra cem anos.

Henry Albert Kissinger, nascido a 27 de Maio de 1923 na Baviera, fugido com os pais do regime nazi, refugiado em Nova Iorque aos 15 anos. Em 1943, naturalizou-se cidadão americano. Serviu no exército dos Estados Unidos durante a II Guerra Mundial. Escapou à morte, mas o sistema totalitário tocou-o de perto: 13 dos seus parentes sucumbiram no Holocausto.

Admirado, invejado e detestado em partes iguais, pontificou nas administrações Nixon e Ford entre 1969 e 1977. Primeiro como conselheiro da Segurança Interna, depois como secretário de Estado - terceiro posto na hierarquia governamental. No auge do caso Watergate, chegou a ser ele a segurar no leme. Enquanto rasgava horizontes na política externa norte-americana: liderou o degelo diplomático com a República Popular da China ao avistar-se com Mao Tsé-tung, levou Washington a substituir os soviéticos como força dominante no Médio Oriente ao assumir-se como interlocutor entre israelitas e árabes, negociou a limitação de armas estratégicas com Moscovo em plena Guerra Fria. 

 

Doutorou-se com uma tese sobre Metternich (1773-1859), príncipe da diplomacia no império austríaco, expoente máximo da doutrina realista contra os idealistas, responsáveis por tantos conflitos bélicos.

Nos anos 50 e 60 foi um dos mais famosos professores em Harvard, onde leccionou Ciência Política antes de rumar aos palcos mundiais como comandante norte-americano para os assuntos externos. Com várias sombras entre muitas luzes, incluindo o apoio activo às ditaduras de Pinochet no Chile e de Suharto na Indonésia (dando cobertura à invasão de Timor em 1975) e a sua falhada visão de um Portugal mergulhado no comunismo em 1975, útil como «vacina para a Europa». Ao contrário do que previa, os comunistas foram derrotados aqui. Enquanto ganhavam terreno em África e no Sueste Asiático: o Nobel da Paz que recebeu em 1973 pelos acordos de Paris anteriores à retirada norte-americana do Vietname ainda suscita polémica.

Facto inegável: foi um dos mais brilhantes intelectuais que trabalharam nos últimos 60 anos na Casa Branca. Após abandonar funções públicas, tornou-se consultor de monarcas, presidentes e primeiros-ministros. Já nonagenário, continuou a percorrer o mundo: só a pandemia, em 2020, o reteve na sua casa rural no Connecticut. Mas ainda frequenta regularmente o seu escritório, no 33.º andar de um edifício art déco em Manhattan. E continua a publicar livros. Tem dois muito recentes. Um sobre inteligência artificial (tema que o fascina e preocupa), outro sobre seis políticos que conheceu pessoalmente: Konrad Adenauer, Charles de Gaulle, Richard Nixon, Anwar Sadat, Lee Kuan Yew e Margaret Thatcher (Liderança, já com edição portuguesa da Dom Quixote).

Do antigo Presidente francês, cita com frequência uma frase emblemática sobre comando político: «Assumir riscos constantes numa perpétua luta interior.»

 

Em recente entrevista ao Sunday Times, pronunciou-se sobre a invasão russa da Ucrânia. Elogiando Zelenski: «Não há dúvida de que cumpriu uma missão histórica.» E criticando Vladimir Putin: «Chefia um país em declínio e perdeu o sentido das proporções nesta crise.»

Judeu, aos 9 anos o pequeno Heinz (só viria a chamar-se Henry na América) viu Hitler ascender ao poder no seu país natal, onde em menino adorava jogar futebol. Nem o exílio forçado nem o incêndio da Europa que testemunhou ao vivo diminuíram o proverbial optimismo que muitos lhe reconhecem. Mas vai advertindo contra os sinais de crescente desagregação da ordem mundial que imperou nas últimas três décadas: «A segunda Guerra Fria será ainda mais perigosa do que a primeira.»

Um aviso que deve ser levado a sério. Vem de quem sabe mais e viu muito mais do que qualquer de nós.

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