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Delito de Opinião

Catar 5 - Viva Carlos Queiroz!

jpt, 27.11.22

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O desporto serve de propaganda dos países - e daí todas as manipulações estatais desse património, desde a simples associação dos políticos aos ídolos aos apoios cirúrgicos a actividades que possam fazer resplandecer os Estados e seus próceres. Até, de forma ainda mais perversa, às indústrias de aplicação de drogas - o sempre dito "doping" - centrifugadas pelos Estados, principalmente, mas não só, os ditatoriais. Mas ao mesmo tempo - numa confluência avessa a leituras lineares, encomiásticas ou denunciatórias -, o desporto é o espelho das sociedades, assim não só matéria através da qual se descortinam características fundamentais mas também dinâmicas transformativas emergentes ou existentes.

Em Portugal tal complexidade foi patente durante as guerras coloniais, com as espantosas epopeias do Benfica europeu - e, em menor escala, do Sporting - e, ainda mais, dos "Magriços", essas amálgamas de filhos de operários e agricultores miserabilizados pejadas, estreladas e até capitaneadas por mulatos "filhos do Império" (estes assim elevados a "brancos", como lembrou o Monstro Sagrado Mário Coluna na sua biografia), equipas que se poderiam dizer epítomes do então propagandeado "luso-tropicalismo", quase como se o seu seleccionador fosse, afinal, o brasileiro Gilberto Freyre.*

 

Depois, e já na minha atenta meninice, foi o advento de Joaquim Agostinho, ídolo do povo, na sua força heróica até algo simplória impondo-se lá nas "franças", para onde haviam partido tantos dos seus, labutando nos sopés das sociedades ricas, assim representando-os e até alijando-os daquilo a que os seus netos haveriam de chamar "discriminação" - e que espantosa comoção popular aquando da sua tão injusta morte! Por cá, sociedade atrapalhada, pobre e anacrónica, sob Estado pária, o desporto-rei firmou-se no "ferrolho" quando lá fora, o orgulho do empatezito a zero em mero particular em Wembley, o culto do singelo "brilharete" - como sempre titulava o então bíblia "A Bola" - que iluminasse o negrume em que isto ia. Quanto à "glória nacional" ela vinha dos triunfos no hóquei em patins, esse esconso desporto próprio de um país, o nosso, de uma província espanhola, de uma cidade italiana e de uma avenida argentina, como alguém tão bem então o definiu...

Depois foi-se sedimentando o desporto democrático, na profissionalização e num ambiente menos paternalista e de organização cada vez mais autónoma. Ainda rústico e pobre, por isso nada atreito a práticas colectivas ou à complexidade das disparatadamente chamadas "disciplinas técnicas" -. como se algumas não o fossem - (e  por isso o agrado de ver os actuais sucessos numa variedade de desportos), afirmaram-se os corredores de fundo, heróis solitários quais novos Agostinhos, feitos do inato e do esforço incessante. O Grande Carlos Lopes e também Fernando Mamede, este na absoluta grandeza da ambivalência feita dos seus dramáticos insucessos, ou Rosa Mota, que revolucionou o lugar das mulheres neste mundo luso, até porque prosseguida por outras campeãs. Todos estes mostrando que o sucesso "lá fora" era possível, apesar do nosso tudo...

As coisas mudaram no final de 1980s, com os excêntricos e inesperados triunfos mundiais das equipas de Carlos Queiroz, do "professor Carlos Queiroz" como então sempre era tratado. Pois este trouxe para a primeira página os triunfos colectivos - e logo no "desporto-rei" -, nisso também o primado da táctica, da organização, da formação, da "ciência". De algum modo Queiroz foi o verdadeiro arauto da modernidade no país - e não outros mais-velhos "professores" de humanidades entretanto celebrados no novo regime, provenientes de exílios ou mansos reviralhos -, na popularíssima demonstração de que se poderiam abandonar os velhos espartilhos institucionais e os meneios do "desenrascanço", a praxis avulsa. Na bola e não só.

E foi também insurgente, na exigência da radical democraticidade, na sua célebre saída "é preciso limpar muita merda" da bafienta Federação, ainda pejada - 20 anos depois de 1974 - dos tiques e toques fascizantes que haviam sido preservados pelo anterior e anacrónico seminarista presidente Silva Resende.  Ou seja, Queiroz trouxe cientificidade - como é reconhecido na explosão posterior de uma "ínclita geração" de especialistas futebolísticos, nele originada -, mas também a reclamação de pertinência institucional (uma burocracia weberiana, por assim dizer). Deste modo, e até pelo enorme peso do futebol nos afectos nacionais, mudou o país. Não só acrescentando-lhe o horizonte da vitória colectiva mas, acima de tudo, anunciando como era necessário trabalhar.

Ter-se-ia tornado o símbolo, decerto que condecorável e senatorial, deste país agora europeu não fosse a sua personalidade agreste, desbocada, convicto de si e das suas certezas o suficiente para não andar de retorcido chapéu na mão. No peculiar mundo do futebol as paixões dos adeptos não lhe perdoaram os insucessos que fazem parte do ofício - nós, sportinguistas, ainda remoemos os 3-6 face ao Benfica (e eu, em particular, o facto dele ter tirado o Paulo Torres ao intervalo, abrindo o corredor para o João Pinto e o Isaías, jogo que vi, nunca esqueço para minha maior ira, na célebre "Tasca do Isaías" em Estremoz...). Outros contestam a eliminação nos oitavos-de-final do Mundial-2010 (passo em que Fernando Santos é especialista, para placidez adepta e anuência federativa), acontecida diante da melhor selecção de XXI (ali campeã mundial e antes e depois campeã europeia), numa derrota por 1-0 com golo em centimétrico fora-de-jogo na única hipótese ali acontecida. Outros clamam, eufóricos, o seu falhanço num desequilibrado e sempre problemático Real Madrid. E assim, desprotegido pela opinião pública (malgré tout) e desagradável às instâncias burocráticas, Queiroz saiu pela porta dos fundos - com o patético pretexto dos "vigilantes" do doping aparecerem na madrugada para controlarem os jogadores da sua selecção e ele lhes ter votado umas caralhadas bem justificadas, exigindo-lhes que esperassem apenas uma hora, pelo normal despertar dos seus atletas de alta competição ali em estágio...

Nesse consabido percurso de "santo da casa que não faz milagres" (apesar de os ter feito) Queiroz fez-se ao mundo, face ao displicente silêncio dos compatriotas. Pouco ecoou no país o gigantesco elogio, apaixonado mesmo, que o mítico Alex Ferguson lhe fez na sua autobiografia, tão parca em referência a outros treinadores - Wenger e Mourinho, como seus rivais, Queiroz como seu colaborador (deixei aqui uma recensão a esse livro, tamanho o interesse tido na visão de Ferguson centrada nas acções individuais). E está agora, globe-trotter quase septuagenário, de facto no seu 5º mundial - apurou a África do Sul tendo sido afastado da fase final por razões óbvias: ele atribui-as, elegante, a opções pelo pleno emprego (disse qualquer coisa como "eu estou sozinho, o meu substituto tem uma equipa de 18 colaboradores...) mas muitos percebemos as dinâmicas xenófobas e mesmo racistas que conduziam a federação sul-africana...

Enfim, tudo isto me vem a propósito do seu estatuto actual. Tripla participação num Mundial como seleccionador do Irão, ainda por cima em contexto político tão complicado naquele país, que envolve os seus jogadores. Na necessidade de blindar o seu grupo Queiroz, o "professor Queiroz", vem assumindo um papel que nos surge como o de antipático "advogado do diabo". Fá-lo no seu modo algo desabrido, afrontando os jornalistas internacionais, como biombo dos seus "rapazes" às  problemáticas políticas. E agora mesmo responde de forma exemplar ao antigo jogador e seleccionador Jurgen Klinsmann, pondo-o no lugar. E não é preciso simpatizar com a teocracia ditatorial de Teerão para fazer vénia ao "professor" - principalmente se percebendo que o desporto é política, não só mas também. No Irão e nos outros países.

Por isso, pelo restante anterior, e apesar de nunca lhe perdoar a afronta de ter ido falar a João Moutinho no Irão-Portugal de 2018 - um treinador a perturbar um suplente adversário quando este vai entrar em campo foi uma coisa inaudita, que deveria ter sido punida -, apesar disso, gostei de o ver aclamado em campo pelos seus "rapazes" - e de um modo que todo o mundo viu. E nisso aqui deixo um Viva o Professor Carlos Queiroz! Agreste, desbocado, talvez até arrogante. Mas marcante, imensamente marcante.

*Como adenda, em particular para aqueles que ainda proclamam a necessidade de apartar a "política" do desporto: a história do boicote africano ao Mundial 1966 e os efeitos na FIFA da actuação portuguesa. Sobre o impacto da campanha dos "Magriços" na imagem internacional de Portugal ver este trabalho de Luís Lourenço, em particular após a página 80.

 

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