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Delito de Opinião

Catalunha, uma reflexão sistémica

Alexandre Guerra, 12.11.17

A questão da Catalunha tem suscitado inúmeras análises, muitas delas com pertinência e qualidade, outras, nem tanto, visto serem motivadas por preconceitos ideológicos, onde se esgrimam argumentos cuja validade pouco interessa para a compreensão daquele problema. Então o que há a acrescentar ao que se tem escrito e dito? Na verdade, não é tanto aquilo que se pode acrescentar em termos de informação, mas sim a forma como se pode ler tudo o que está em causa, partindo-se de uma abordagem sistémica à luz da história. Muitas vezes, fazendo-se esse exercício, que é uma prática comum para quem estuda Relações Internacionais, chegam-se a modelos que nos permitem, dentro de um certo limite, encontrar algumas respostas ou antecipar dinâmicas de um conflito ou de uma crise. De pouco serve recuar um, dois ou até cinco anos para se chegar a um racional sólido. Esse, aliás, tem sido um dos vícios na forma como a questão da Catalunha tem sido abordada, gerando, por vezes, equívocos. Neste caso, é importante recuar um pouco mais atrás, à altura em que surge a consciência política das massas trazida pela Revolução Francesa, depositando no Povo e na Nação a legitimidade do Estado. Essas sementes florescem em força com os nacionalismos do século XIX, apesar da tentativa de controlo sistémico promovido no célebre Congresso de Viena de 1815 (que marca politicamente o início do século XIX), no qual se definiu o “direito das nações se organizarem politicamente como Estados soberanos (embora sempre sob a vigilância dos grandes impérios)”.

É importante notar que o nacionalismo catalão nunca fez parte deste jogo dos nacionalismos exacerbados europeus. No entanto, um pouco por toda a Europa, com mais ou menos intensidade, o choque entre os resquícios do absolutismo do antigo regime e as sementes da Revolução Francesa faziam-se sentir no confronto entre Estado absoluto versus Estado nação. E, de certa forma, com contornos específicos, foi a isso que se assistiu durante o século XIX também em Espanha. E aqui, a história dos nacionalismos acaba por surgir no final do século XIX, altura em que se assiste à emergência dos chamados nacionalismos periféricos, assentes, sobretudo, no desenvolvimento económico, mas também nas nuances étnicas, culturais e linguísticas de algumas regiões espanholas face a Castela. O País Basco e a Catalunha, as duas regiões mais avançadas no final do século XIX em Espanha, são os projectos mais evidentes, no entanto, com vocações completamente diferentes. Aqui, neste texto, interessa apenas o nacionalismo catalão, claramente “o arauto da modernização e do progresso contra o conservadorismo do regime de Madrid”, escreveu Maria Regina Marchueta na obra “Os Nacionalismos Periféricos em Espanha (Edições Duarte Reis, Lisboa 2002. Pref. Adriano Moreira)”, a sua tese de doutoramento do ISCSP e de leitura obrigatória para quem gosta deste tema.

A verdade é que até finais do século XIX, e ao contrário do que muito se tem escrito e dito, a questão dos nacionalismos em Espanha não existia, quer em termos conceptuais, quer em termos políticos. Madrid iniciou esse papel, já que a Catalunha perdeu muito do seu poder com a decadência do comércio no Mediterrâneo, ao mesmo tempo que Castela assumiu a “sua função directora, de perfil militar e religioso”, orientando o seu projecto histórico numa lógica religiosa de Reconquista. “O nacionalismo espanhol, ainda inexistente esta época, seria o resultado de um processo gradual, que se ia completando à medida que recebia as contribuições da implantação do sistema nacional de educação primária, da ampliação territorial do recrutamento militar, da extensão dos meios de comunicação e do próprio desenvolvimento da organização do Estado”, lê-se no livro de Marchueta.

Neste quadro e receando tornar-se “um mero apêndice de França”, a Catalunha “aposta então pela Espanha imperial, oferecendo-lhe, como contrapartida, uma armadura ideológica ao seu deficitário conceito e nação, ainda demasiado preso, quer de uma concepção política teológica, quer da visão racionalista dos direitos naturais”. Se, por um lado, Madrid vai construindo uma ideia de Nação “através da captação das forças vivas das províncias”, por outro, vê reforçada essa construção com a reacção acérrima às invasões napoleónicas por parte das regiões. É importante constatar que a independência nunca foi um objectivo da Catalunha, que optou sempre por gerir os seus interesses sempre dentro do Estado espanhol. Porém, que não haja ilusões, esta construção da nação espanhola é forçada, precisamente, pelos interesses, o que não quer dizer que não seja concreta nem efectiva. E também não quer dizer que as diferentes sensibilidades não subsistam. É precisamente neste período que a esquerda republicana se começa a instalar na Catalunha, claramente defensora de um federalismo regional, muito por oposição ao carlismo conservador enraizado nas populações mais rurais (ideias que irão, décadas mais tarde, estar em confronto na sangrenta Guerra Civil).

Maria Regina Marchueta identifica a “independência de Cuba, a rebelião das Filipinas e a derrota frente aos EUA” como factores “reveladores da extrema debilidade de Espanha” e que “supuseram um rude golpe na consciência colectiva do país”. Além disso, “a Catalunha, firme na convicção de ser a sede da riqueza nacional, denunciará o falhanço da política centralizadora de Madrid”. E é precisamente nos finais do século XIX que surgem os primeiros teóricos que dão corpo doutrinário ao nacionalismo catalão. Talvez o mais importante seja Eric Prat de La Riba, que no seu livro “La Nacionalitat Catalana” formulou o catalanismo como a afirmação da identidade histórica, cultural e económica da Catalunha, mas sempre dentro do Estado espanhol. O catalanismo propôs-se também a ser um movimento regenerador face ao poder conservador de Madrid.

Não obstante os devaneios de um ou outro aventureiro (e Carles Puigdemont pode ser incluído nessa categoria), se olharmos para a história política da Catalunha, constata-se que a independência nunca foi a questão central nem reclamada por aquela região, mas sim a autonomia ou o federalismo. Muito se tem falado na Constituição de 1978 e no Estatuto de Autonomia, mas, na verdade, foi a Constituição espanhola de 1931, com a implantação da curta e turbulenta II República, que abre caminho para a solução do problema regional. “A Constituição da II República constituía, assim, o original precedente da organização territorial do Estado, mercê do reconhecimento da realidade histórico-cultural da Espanha”, escreve Marchueta. É aqui que se institui a Generalitat e que em 1978 é recuperada. Entretanto, em 1932 era aprovado o Estatuto catalão, em 1933 o basco e em 1936 o galego. O que aconteceu a seguir, com a Guerra Civil e o franquismo, acabou por oprimir os nacionalismos periféricos e adormecer a esquerda republicana. A própria ideia de nacionalidade espanhola ficou associada ao projecto do Estado franquista.

A Constituição de 1978 pode ser vista, de certa forma, como uma solução inevitável para descomprimir a pressão exercida durante décadas sobre os nacionalismos periféricos. Poderá nunca ter criado as expectativas que a Constituição de 1931 provocara nos movimentos nacionalistas, já que estávamos perante um documento progressista elaborado num regime republicano, mas a verdade é que a Lei constitucional de 78 permitiu arrumar os nacionalismos periféricos dentro do Estado espanhol até hoje e, diga-se, sempre com uma certa ordem sistémica. E no que à Catalunha diz respeito, Jordi Pujol foi uma figura central na gestão desse equilíbrio, entre o projecto nacionalista moderado e conservador e o Estado espanhol. Pujol personalizou aquilo que tantos outros líderes catalães foram fazendo ao longo da história daquela região: gerindo os interesses e cinismos de uma nação, que nunca se viu verdadeiramente empenhada em lutar por ser um Estado independente, mas também que nunca aceitou ser um elemento passivo na construção do Estado nação espanhol. Uma das virtudes do actual modelo de autonomia é que tem permitido, precisamente, a coabitação entre diferentes correntes nacionalistas na Catalunha e o relacionamento estável com Madrid. E isso, com mais ou menos questão pelo meio, tem funcionado dentro daquilo que seria expectável num país como a Espanha.

Perante o que aqui foi escrito, ou Carles Puigdemont não fez a devida leitura histórica ou assumiu que o “seu” povo lhe iria dar o projecto de nação independente. Ora, o que hoje já se pode assumir com toda a certeza (e era óbvio), é que o povo catalão, no seu todo, não se revê nesse projecto de nação protagonizado por Puidgemont. Nem de perto nem de longe e quando assim é, não há processo de auto-determinação que chegue a bom porto. O princípio da nação independente assenta, antes de mais, numa vontade popular imensa e massificada em partilhar uma ideia comum. Esse desejo ardente e quase irracional do povo assumir os desígnios do seu futuro, ao ponto de dar a vida por isso, é uma espécie de combustível para qualquer processo disruptivo e de independência. A questão é que os ímpetos independentistas nacionalistas nunca pulsaram com essa intensidade na história catalã, mesmo em períodos difíceis e turbulentos. Se assim foi – e sem que as relações de força entre Madrid e Barcelona estivessem a viver momentos particularmente especiais –, por que razão achou Carles Puigdemont que a História lhe teria concedido o privilégio de estar a viver um tempo especial? Uma coisa é certa, são muitos aqueles que, consumidos pelo seu ego ou até mesmo delírio, se consideraram predestinados para fazer algo de grandioso e acabaram na sarjeta da História… ou em manicómios.

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