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Delito de Opinião

Carlos

José Meireles Graça, 16.01.22

Não vivíamos na mesma cidade há muitos anos e nunca fomos muito chegados, nem sequer quando éramos novos, ele quatro anos mais, o que na adolescência é muito. Gostava de motas e carros, e eu também, mas isso quase todos.

O que não éramos muitos era a apreciar uma boa desconversa. O Carlos sim.

Da última vez que o vi ficamos na mesma mesa, por acaso, um ao lado do outro. Era a apresentação de qualquer coisa de um banco que haveria de ter um destino funesto e estavam os ricos da cidade – os que o eram, os que fingiam e os que julgavam ser. Eu era convidado de um convidado que me apreciava a companhia.

Os presentes distribuíam-se por mesas redondas, muitas, e em cada uma havia um prócer qualquer das finanças, da Academia, da economia ou notabilidades doutras áreas, todos ligados ao banco.

Sucederam-se os discursos, cada um mais chato do que o outro, pintando um Portugal de problemas mas também oportunidades. E a certo ponto levantou-se o Presidente, bateu com o talher no copo, suavemente, fez-se silêncio e começou a falar, calmo e untuoso.

Falou muito de macroeconomia; e citou estatísticas atrás de estatísticas. Tantas que murmurei para o lado se aquelas estatites de que ele estava a falar não seriam umas coisas que havia dependuradas do tecto das cavernas.

O amigo olhou para mim e gotas de suor começaram a aparecer-lhe na careca enquanto uns espasmos contidos o sacudiam. E, desesperado, cobriu os beiços com o guardanapo felizmente generoso, sufocando incontroláveis gargalhadas, vermelho e com lágrimas a correr-lhe pela cara abaixo, enquanto o resto da mesa o contemplava a ele, e a mim a quem o ataque se comunicou, com olhares de gélida censura.

Teve um enfarte, aos 66 anos, e finou-se no hospital. Deixa dois filhos, a quem a mãe já havia morrido num acidente faz cinco anos.

Se no Além calharmos no mesmo sítio, ainda nos havemos de rir. Que santos de pau carunchoso há muitos, e é possível que façam discursos empolgados a gabar as excelências do céu. E, para a troca, ele é menino para ter na aljava uma daquelas piadas foleiras que ambos apreciamos.

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