Saltar para: Post [1], Comentários [2], Pesquisa e Arquivos [3]

Delito de Opinião

Canções no cinema (9)

Pedro Correia, 10.08.15

 

CAN'T TAKE MY EYES OFF YOU (O Caçador, 1978)

 

You're just too good to be true,
Can't take my eyes off of you.
You feel like heaven to touch.
I wanna hold you so much.

At long last love has arrived
And I thank God I'm alive.
You're just too good to be true,
Can't take my eyes off of you

 

Não sei se convosco acontece o mesmo. Comigo é assim: mal ouço os acordes iniciais da belíssima Cavatina, composta por Stanley Myers, já não consigo desviar os olhos do ecrã. É o tema instrumental que assinala o início de um dos filmes da minha vida: O Caçador (The Deer Hunter), de Michael Cimino.

A película prolonga-se por três horas. Cada minuto merece ser acompanhado com atenção.

Estreou em Dezembro de 1978, entre incontáveis polémicas. Chamaram de tudo ao realizador: “fascista” e “racista” foram dois epítetos que lhe dirigiram por ter ousado retratar a face menos amável dos norte-vietnamitas na guerra que os norte-americanos travaram durante uma década na Indochina. A exibição da película no Festival de Berlim, em 1979, originou um boicote dos países comunistas e também de diversos representantes do então denominado Terceiro Mundo. Nesse mesmo ano, por sinal, cerca de 350 mil pessoas fugiam em desespero do Vietname “libertado”, a bordo de embarcações improvisadas. Eram os chamados boat people: foi um dos êxodos mais dramáticos de que há memória no último meio século.

 

O Caçador não era nada do que lhe chamaram à época alguns críticos sempre prontos a confundir ideologia com arte. É um drama com sopro épico centrado em três indivíduos banais, oriundos da América profunda, envolvidos em circunstâncias excepcionais ditadas pelas contingências da geopolítica. É a história de três amigos, jovens operários da indústria do aço na Pensilvânia, mobilizados para uma missão militar no inferno indochinês: Mike (Robert de Niro), Nick (Christopher Walken) e Steven (John Savage).

Acompanhamos o percurso deles – desde os dias em que toda a povoação se veste de gala para figurar no casamento apressado de Steven, na véspera da mobilização para o Vietname, até aos penosos tempos do pós-guerra, em que nenhum volta a ser o mesmo. As caçadas a gamos e veados em que se entretinham antes do embarque não serão mais do que evocações do tempo de feliz camaradagem ao ar livre. Na guerra, quando cada ser humano se torna peça de caça, ou se mata ou se morre. E mesmo os que sobrevivem aparentemente ilesos regressam mutilados por dentro.

deer_hunter[1].jpg

 

Acompanhei o filme na estreia em Portugal, nesse ano de 1979 (quando O Caçador recebeu Óscares para melhor longa-metragem e melhor realização), e percebi de imediato que acabara de assistir a uma obra-prima que subsistiria como marco da Sétima Arte. Tão forte, tão intensa, tão pungente, tão emblemática como O Padrinho 2, de Coppola, que por coincidência vira semanas antes. E com Robert de Niro nas duas longas-metragens: foi quanto bastou para logo se tornar um dos meus actores de eleição.

Como todas as grandes películas, O Caçador contém vários momentos que nos perduram na memória. O mais polémico de todos – e que fez correr rios de tinta em panfletos no mundo inteiro – é a arrepiante sequência em que guerrilheiros vietcong forçam os militares americanos, feitos prisioneiros, a praticar roleta russa. Muito controversa foi também a cena final, em que Mike e uns amigos, à volta de uma mesa, cantam God Bless America: não é um pretexto para a exaltação acéfala de glórias patrioteiras, como alguns imbecis se apressaram a denunciar, mas uma elegia pelo sonho americano - mil vezes desonrado desde os dias dos pioneiros, mil vezes renascido de todas as cinzas.

 

Mas a cena que mais me fascina – e quanto mais a vejo mais me confesso fascinado por ela – decorre ainda na fase inicial do filme, antes do embarque que selaria o destino daqueles operários-soldados, antes dessa esplendorosa festa do cinema que é a sequência do casamento (com 51 minutos de duração, só comparável à do célebre baile protagonizado por Angelica e Tancredi n’ O Leopardo, de Visconti). Passa-se num café, à volta de uma mesa de bilhar: os três amigos e alguns outros despedem-se para sempre dos dias dourados da juventude entre uns goles de cerveja e umas tacadas no pano verde do snooker. Na jukebox, toca um tema musical da época em que a acção decorre. Estamos em 1967, Frankie Valli canta um mega-êxito daquele ano: Can’t Take My Eyes Off You, composto por Bob Crewe (1930-2014), o autor da música, e Bob Gaudio (nascido em 1942), responsável pela letra.

Gravado em Abril desse ano e posto à venda no mês seguinte, o disco fez furor nos tops, tornando-se à época o segundo tema mais popular nos Estados Unidos. Viria a constar do reportório de nomes ilustres, como Andy Williams e Nancy Wilson, e conheceria cerca de 200 versões de então para cá. Mas nenhuma tão célebre como o original de Valli, interpretado no seu inconfundível registo de falsete e secundado pelos Four Seasons, a banda que ainda hoje o acompanha em actuações esporádicas.

 

“I love you, baby and if it's quite alright / I need you, baby to warm the lonely nights / I love you, baby, trust in me when I say / Oh, pretty baby, don't bring me down I pray / Oh, pretty baby, now that I've found you stay. / Let me love you, baby, let me love you”.

Canção na aparência banal, mas que também se tornava extraordinária naquele tempo em que os trilhos do amor davam lugar à implacável rota da guerra. Canção que os amigos cantam em uníssono, enquanto bebem e jogam e riem e se abraçam. Pressentindo talvez que se tratava de um momento irrepetível: não haveria outra oportunidade para perpetuarem através daquele festivo elo tribal os frágeis filamentos que conferem alguma consistência à vida.

Tantas guerras ocorreram desde então - e ei-los ainda a cantar na tela, eternizados graças à magia do cinema. E nós cantamos com eles: "Pardon the way that I stare, / There's nothing else to compare. / The sight of you makes me weak, / there are no words left to speak."

30 comentários

Comentar post