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Delito de Opinião

Canais de Marte (episódio da História do Fracasso)

Luís Naves, 18.09.14

Sabemos hoje que Marte é um planeta inóspito e deserto, com uma superfície avermelhada devido à presença de óxido de ferro e com atmosfera demasiado fina para conseguir captar calor. Distante do Sol em média 50% mais do que a Terra, as suas temperaturas são extremamente baixas e nos pólos chegam a ser inferiores ao ponto de congelação do dióxido de carbono (-190 graus centígrados). A fraca densidade da atmosfera marciana é um mistério, talvez efeito da extinção do campo magnético que permitiu a acção dos ventos solares, havendo a possibilidade de um impacto catastrófico ter arrancado uma fatia da antiga atmosfera.

O quarto planeta do sistema solar tem exercido forte fascínio. Observado já pelos egípcios e gregos, foi baptizado com o nome do deus da guerra dos romanos. Na Era Moderna, houve gerações de astrónomos que tentaram desvendar os seus segredos, mas no final do século XIX uma falsa descoberta excitou a imaginação do mundo científico, contaminando de forma irreversível a cultura popular. Em 1877, houve excelentes condições para a observação do planeta Marte. Foi nesse ano que se descobriram dois pequenos satélites, Deimos e Fobos (Terror e Medo) que serão possivelmente asteróides capturados pela força da gravidade do planeta. Nesse mesmo ano, um eminente astrónomo do Observatório de Milão, Giovanni Schiaparelli, descreveu o que lhe pareciam ser “canais” na superfície marciana. Schiaparelli fez desenhos pouco detalhados onde havia zonas escuras, a que chamou mares, e zonas claras, que denominou continentes. E, entre os dois, aquilo a que chamou “canali”, linhas finas que pareciam ligar as diferentes zonas.

  

Esta observação tornou-se célebre e a palavra italiana canali foi traduzida para o inglês canals, que ao contrário do vocábulo italiano sugeria artificialidade. Este pequeno detalhe bastou para criar um frenesim que rapidamente se converteu numa ideia capaz de concentrar as fantasias da época: a descoberta parecia indicar a existência de vida no planeta vizinho. Bastava olhar por um telescópio e lá estavam as áreas escuras e claras. Ninguém desconfiou da circunstância de não haver dois mapas idênticos ou de ser difícil obter fotografias nítidas das formas.

A observação de Schiaparelli foi popularizada por um matemático e astrónomo americano, o milionário Percival Lowell, que esticou ainda mais o conceito. Onde Schiaparelli vira depressões que podiam ser vales alongados, Lowell encontrou um sistema de irrigação, produzido por uma civilização cuja míngua de água tinha levado a extremos de engenho.

Lowell era uma figura influente e sabia escrever com estilo. O astrónomo americano descreveu com detalhe aspectos “não-naturais” na superfície de Marte, nomeadamente canais construídos para levar água dos pólos para o equador. Viu também oásis, zonas escuras entre canais. Tudo isto sugeria vegetação e inteligência. Estas teses foram discutidas em detalhe pela imprensa e entraram rapidamente no imaginário popular. Entre 1895 e 1908, Lowell escreveu três livros de popularização científica sobre as características artificiais dos canais marcianos e construiu um telescópio que na altura era o mais sofisticado do mundo (na realidade, foi o primeiro edificado a grande altitude), em Flagstaff, no Arizona. Foram feitos mapas detalhados da civilização marciana e especulou-se furiosamente sobre a engenharia em causa.

Nos textos de Lowell os canais e oásis surgiam com sugestivos nomes clássicos. O autor escreveu que havia linhas de vegetação, algumas duplas, e que o fluxo de água das calotes para o equador não podia ser explicado pela gravidade. Origem artificial, água escassa e interferência inteligente foram algumas das expressões que usou. O sistema visava distribuir água e o astrónomo concluía que a forma de vida inteligente era pacífica, pois os povos setentrionais e equatoriais estavam a cooperar para o mesmo fim, tentando travar o declínio do planeta.

Os canais de Marte deram consistência ao género literário hoje conhecido por ficção científica. Em 1898, o escritor britânico H. G. Wells publicou o seu fenomenal A Guerra dos Mundos, livro que descreve uma cruel invasão de marcianos. Em 1912, o americano Edgar Rice Burroughs lançou a sua série de histórias sobre as aventuras marcianas de John Carter, que fez as delícias de mais do que uma geração de jovens. Aliás, o tema da vida inteligente em Marte dominou o género ao longo de todo o século XX, com destaque para clássicos como Crónicas Marcianas, de Ray Bradbury (1951) ou Areias de Marte, de Arthur C. Clarke (1951), onde surgem marcianos inteligentes e os humanos podem respirar na superfície do planeta. Em Martian Time-Slip, de Philip K. Dick ((1964) ou Estranho numa Terra Estranha, de Robert Heinlein (1961), a paisagem já é mais inóspita, uma espécie de deserto, mas as pessoas circulam com respiradores e as temperaturas são aceitáveis. Até há agricultores no livro de Dick.

 

Se estas ideias tinham entrado com força na cultura popular, na comunidade científica havia cépticos que já no início do século XX tinham demolido a tese dos canais e da civilização alienígena. Todas as tentativas de desenhar o tal sistema davam resultados diferentes, conforme o autor da observação ou o dia em que era feita.

Schiaparelli faleceu em 1910 e Lowell em 1916, antes de surgir a explicação da ilusão de óptica. Na realidade, os astrónomos eram enganados pela sua própria visão, pois os seres humanos têm tendência para formar padrões onde estes não existem. Não havia canais, mas uma superfície irregular que a imprecisão dos telescópios, as deformações atmosféricas e a má visão humana transformavam num imaginário sistema de irrigação. Também havia entusiasmo em excesso e alguns autores estavam apenas a encontrar os seus desejos.

O segundo livro de Lowell, Mars and Its Canals, mereceu em 1907 a crítica demolidora de Alfred Russell Wallace (1823-1913), um dos maiores cientistas do seu tempo e que já em 1902 tentara refutar a teoria dos canais. Num livro intitulado Marte É Habitável?, Wallace explicava que não havia vapor de água, que a pressão atmosférica era demasiado débil e a temperatura demasiado baixa para permitir água no estado líquido. Este livro é considerado um percursor de um ramo novo, a astrobiologia. Wallace é uma das figuras mais extraordinárias (e modestas) da história da ciência. Este biólogo fez observações em todo o mundo e concebeu a teoria da evolução na mesma altura em que Charles Darwin a propôs publicamente, embora o seu mecanismo de diversificação das espécies não tenha usado o termo “selecção natural”, que ficou mais famoso. Darwin tem assim a primazia da teoria da evolução, mas deu sempre a Wallace o devido mérito e os dois homens mantiveram uma longa e frutuosa amizade.

 

Apesar destes esforços, a ideia de Lowell sobre os canais em Marte só foi totalmente rejeitada na década de 60 do século XX, quando a NASA enviou as sondas automáticas Mariner. Apesar de tudo, Lowell é uma figura marcante da astronomia e dedicou parte da sua vida à procura do misterioso planeta X, em órbita além de Neptuno, investigação que levou à descoberta de Plutão em 1930. As duas primeiras letras são uma homenagem ao seu nome, Percival Lowell. O nono planeta do sistema solar foi entretanto despromovido a planeta anão, categoria que poderá ter mais de 20 objectos no sistema solar.

Os marcianos reapareceram em 1996, quando foram observadas pequenas estruturas no interior de um meteorito encontrado na Antártida e que um impacto ejectara de Marte num passado remoto. Alguns cientistas viram nessas estruturas micróbios fossilizados, mas a ideia tem sido contestada. Marte foi entretanto estudado por sondas automáticas, sobretudo da NASA, Viking (1976), Mars Pathfinder (1997), Spirit e Opportunity (2004) e a mais recente Curiosity (2012), todas com resultados sensacionais. As sondas demonstraram que no passado do planeta (há milhões de anos) houve água em estado líquido na superfície. Se existir vida, ela será precária e estará enterrada profundamente no solo marciano, ao abrigo dos raios ultravioleta. No entanto, os autênticos marcianos poderão no futuro ser da espécie humana. É muito discutida a ideia de terraformar o planeta vermelho, algo que teria enormes dificuldades e custos, mas que será tecnicamente possível. Uma eventual colonização humana de Marte não começará antes de 2030. Os nomes até já existem: foram sugeridos por Lowell (Elysium, Fons Immortalis, Arcadia, Tharsis). 

 

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