Câmara Corporativa
Acabo de ver Isabel Camarinha a aliviar-se de declarações à saída de uma audiência no Palácio de Belém, cujo locatário também recebeu as confederações patronais, em nome das quais prestou declarações um tal Calheiros. Isabel foi significar ao Presidente as profundidades do seu pensamento sobre o chumbo do Orçamento, os salários, as greves e outros assuntos do seu breviário, e as confederações foram explicar por que razão abandonaram a Concertação Social, aproveitando, parece, para dizer não sei quê sobre o salário mínimo.
Convém dizer que Marcelo, se não partilhasse com a generalidade da opinião pública (que por sua vez é mais vezes sim do que não um reflexo da opinião publicada), convicções obnóxias sobre o que é o interesse público não recebia, nesta altura, esta tropa fandanga. O assunto neste passo são eleições, possível interferência do Governo no processo eleitoral em que é parte, prazos, situação dos partidos, etc., e nem os sindicatos nem as associações patronais têm seja o que for a ver com os mecanismos pelos quais o problema criado pela não aprovação do Orçamento se resolve.
No mínimo, esta gente foi lá fazer perder tempo, mesmo que este Presidente o malbarate habitualmente em vacuidades. E alimentar um equívoco corporativo, que consiste em supor que há um processo democrático paralelo em que corpos sociais têm interesses unívocos, esses interesses são encarnados por aquelas pessoas cuja representatividade é, para dizer o mínimo, obscura, e as opiniões veiculadas têm peso institucional relevante é, neste caso como noutros, uma desvalorização da democracia e da Assembleia da República.
Que os patrões se organizem em grupos de pressão, nada a opor, mesmo que esses grupos não abranjam patrões comuns, isto é, os que não dispõem de tempo para dedicar ao tráfico de influências e ao jogo de poder que a conquista de lugares de influência implica; e que trabalhadores se filiem ou vagamente apoiem sindicatos, mesmo sabendo que estes são frequentemente coios de comunistas e radicais, idem.
Não é porém sadio que a comunicação social descreva uma enguia irresoluta como António Saraiva como “patrão dos patrões”. Os patrões não têm patrão, isso os distingue, e a sua condição é o triunfo do individualismo, que só pode ser adequadamente representado por quem o defenda ferozmente – não é o caso de Saraiva, e duvido que de algum dos outros. E sendo natural que os trabalhadores comuns, cuja maioria não navega nas águas do esquerdismo assanhado, confiem mesmo assim em sindicalistas porque a militância fanática daqueles lhes pode dar jeito em situações de conflito com os patrões, já não o é que depois se venha oficialmente a receber a CGTP como se representasse os trabalhadores. Não representa: a CGTP é, e sempre foi, o braço do PCP para o mundo do trabalho (para usar o jargão deles), e quem tem competência para legislar sobre as relações de trabalho, mesmo que o faça desastradamente, é o Parlamento, onde estão representadas todas as correntes de opinião política relevante, e o Governo, que tende (o actual seguramente) a representar as convicções asnáticas dominantes.
O coroar deste teatro de sombras é o Conselho Permanente de Concertação Social, que já em Junho de 2014, quando os inúteis que o povoavam eram outros, caracterizava assim. Foi este Conselho que foi “desautorizado” há dias quando o Governo, pressionado, deixou de fingir que respeita aquela joça, um crime de lesa-convenções: ali gente que finge que representa classes profissionais finge que negoceia entre si e depois com quem finge que os respeita. A comunicação social e quem a consome, provavelmente, não finge: acredita que tudo isto é para levar a sério.
As despesas envolvidas com esta maquinaria têm expressão muito relevante? Se a Constituição fosse expurgada do seu art.º 92º, que consagra a Câmara Corporativa com outro nome, haveria um grande benefício? E o assunto interessa muito?
Não, não e não. Mas migalhas são pão. E depois, para Pessoa, a metafísica era uma consequência de estar mal disposto; a mim, o estar mal disposto não me dá para nada, mas o espectáculo destas personagens que desempenham o seu lamentável papel agrava-me a má disposição.