«Caim, onde está o teu irmão?»
Os blindados russos invadiram a Ucrânia faz hoje 90 dias, a 24 de Fevereiro. Setenta e duas horas antes, num discurso difundido pelos meios oficiais de Moscovo, Vladimir Putin deixou clara a sua intenção: riscar o país vizinho do núcleo de nações soberanas. Um acto de agressão deliberada nunca visto no continente europeu desde a II Guerra Mundial e que parecia decalcar o comportamento da Alemanha nazi ao anexar sucessivamente a Áustria, a Checoslováquia e a Polónia.
De um lado, o Estado com mais vasta superfície terrestre, com quase 150 milhões de habitantes e maior potência nuclear do planeta. Do outro, um país com 44 milhões de pessoas e recursos militares muito inferiores aos russos. Desde logo por ter abdicado em 1994 do seu arsenal atómico, ali instalado desde a Guerra Fria, numa inegável prova de boa vizinhança que o Kremlin nunca agradeceu.
A 20 de Abril, vendo que o objectivo inicial de ocupar Kiev numa espécie de parada triunfal se havia gorado por completo, Putin alargou a sua retórica a outros destinatários. Ameaçando o Ocidente com o lançamento do míssil balístico intecontinental RS-28 Sarmat, conhecido na gíria russa por Satã 2. Seis dias antes, Moscovo ameaçara lançar engenhos nucleares no Mar Báltico caso a Finlândia e a Suécia aderissem à NATO. Algo inaudito entre países que mantêm relações diplomáticas, algo digno do alucinado major Kong celebrizado por Stanley Kubrick no filme Dr. Strangelove.
Ameaças que não enfraqueceram a solidariedade ocidental nem quebraram a resistência ucraniana. Pelo contrário, robusteceram os elos euro-atlânticos e aumentaram a determinação da nação agredida em fazer frente ao invasor.
David erguia-se contra Golias, como aconteceu com o bravo povo timorense durante um quarto de século face às atrocidades cometidas pelo ocupante indonésio no seu território.
Noventa dias depois, já é possível concluir que Putin é o grande derrotado desta operação bélica que devastou milhares de vidas, causou incalculáveis danos materiais, arrasou vilas e cidades e causou morticínios como os de Butcha, Irpin e Mariúpol.
- Dotou a NATO de um inimigo concreto, palpável, unindo-a como nunca desde a Guerra Fria e ampliando a organização com a entrada de dois novos membros;
- Conduziu a Alemanha a uma viragem histórica em termos estratégicos, contribuindo para o rearmamento germânico em larga escala e para uma alteração radical da política energética deste país;
- Solidificou a União Europeia, fracturando o Grupo de Visegrado, onde tinha interlocutores preferenciais;
- Sofreu duras derrotas políticas na ONU, tanto ao nível do Conselho de Segurança (que evitou com o seu veto) como da Assembleia Geral. E foi excluída da Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas;
- Afugentou os seus aliados na Europa Ocidental, virando contra eles as opiniões públicas, como ficou evidente na derrota sofrida por Marine Le Pen na eleição presidencial em França;
- Tornou a Rússia num Estado-pária em diversos planos, condenando a sua população à penúria financeira e ao isolamento internacional;
- Gerou mais caixões de militares russos em três meses na Ucrânia do que em dez anos de intervenção soviética no Afeganistão;
- Transformou Volodimir Zelenski num herói à escala planetária.
Três meses depois, tudo pode ser resumido nesta frase do ministro lituano dos Negócios Estrangeiros, Gabrielius Landsbergis, ao New York Times: «Putin tornou possível o impensável.»
Travar o passo ao imperialismo russo, de matriz xenófoba e neocolonial, passou a ser prioridade absoluta para o Ocidente: não haverá apaziguamento com Putin. Isso criaria um gravíssimo precedente, encorajando todos os atavismos bélicos em qualquer parcela do planeta e transformaria o Direito Internacional numa grotesca reedição da lei da selva, onde impera o mais forte.
Vai chegando o momento de lhe pedir contas pelas violações, pelas pilhagens, pelas execuções de civis a sangue-frio, pelos crimes de guerra que têm sido cometidos a mando do Kremlin na Ucrânia.
Vai chegando o momento de os próprios russos se erguerem sem temor perante o tirano abençoado pelo sacrílego patriarca ortodoxo de Moscovo e perguntarem-lhe em nome das incontáveis vítimas que já causou nos dois lados da fronteira: «Caim, onde está o teu irmão?»