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Delito de Opinião

Cadernos de um enviado especial ao purgatório (32)

Luís Naves, 02.09.14

Certos intelectuais olham para o País com indisfarçável desprezo. Isso é visível neste texto, do qual destaco a seguinte frase: “A fina película do nosso progresso, cada vez mais fina com a crise das classes ascendentes, revela à transparência todo o nosso ancestral atraso, ignorância, brutalidade, boçalidade, mistura de manha e inveja social”. O ‘nosso’ está ali para disfarçar, pois duvido que o autor, Pacheco Pereira, se reveja nestas linhas, que pretendem ser o retrato fiel do povo português, tal como é visto pelas elites. 

E, no entanto, a frase é falsa, não há outra maneira de a caracterizar. O autor descreve um Portugal inexistente, puramente imaginário, povoado por criaturas grotescas e meio debilóides, incapazes de um pensamento estruturado, portanto necessitando da condução esclarecida de uma vanguarda intelectual com ideias e leituras cosmopolitas.

Para o autor, o povo português não vive em cidades e subúrbios, não se concentra no terço litoral do território, não está a envelhecer depressa nem enriqueceu, não é europeu nas suas preferências nem evoluiu um milímetro em matéria de instrução. A frase parece tirada de um romance neo-realista dos anos 40, descrevendo um país de cavadores depauperados, com gosto folclórico e nenhum conhecimento do que se faz lá fora.

Os jovens são drogados e vazios, os velhos não existem, como não existem mulheres independentes. Os portugueses são invejosos e manhosos, brutais (esta ideia nem percebo de onde vem) e as classes em ascensão estão em crise (suponho que o autor fala da classe média, que nunca foi tão alargada e tão influente).

O pior é que este tipo de comentário conquistou as discussões públicas; Portugal acabou, está morto e enterrado. E, no entanto, a visão de hecatombe não é apenas míope em relação ao povo que descreve, mas exibe desconhecimento profundo da realidade sobre esse povo. As elites intelectuais assistem à mudança da sociedade portuguesa sem perceberem patavina do que está a suceder, aplicando uma grelha de análise que talvez fizesse sentido na década de 40, mas que agora é apenas absurda.

 

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