Cabul, Agosto de 2021
Saigão, 1975: a história repete-se
É fatal, nestas ocasiões: vejo mil tudólogos a poisar nas pantalhas declarando-se especialistas em temas internacionais - e no drama do Afeganistão em particular. Não tardam a aparecer os relativistas militantes, sugerindo que devemos respeitar as «diferenças culturais» e o direito de cada povo a eleger os seus representantes. Como se alguém tivesse eleito ou viesse a eleger a turba talibã. Como se não houvesse o dever moral, da nossa parte, de declarar criminoso todo o poder que pretende legitimar-se à margem dos direitos humanos, exibe a todo o momento a supremacia dos canhangulos e transforma a palavra divina em instrumento de terror.
Nestes instantes, nunca faltam à chamada aqueles que, instalados no conforto ocidental, concentram as suas críticas no Ocidente. Por ter inaugurado no Afeganistão um «Estado falhado». Para desfazer dúvidas, basta no entanto perguntar aos afegãos se preferiam viver nesse «Estado falhado» que lhes trouxe inédita liberdade durante 20 anos - correspondendo a uma geração inteira - ou se preferem viver agora novamente sob o domínio cavernícola dos talibãs.
Nem é preciso perguntar. Eles - e elas, sobretudo - estão a responder há semanas, abandonando o país em massa. Como podem. Por vezes sem levarem mais nada senão a roupa que têm vestida.
Quem não consegue fugir, teme o pior.
Como a estudante universitária que alude às «faces hediondas dos homens que odeiam mulheres»: já são eles a mandar de novo. Ou a juíza que desempenhou estas funções durante dez anos e se confessa apavorada perante a perspectiva de se abrirem as portas das prisões cheias de reclusos a reclamar vingança.
Não há lugar para elas - nem para muitas outras - nas evacuações de emergência que prosseguem há 72 horas, com cada um a tratar de si, deixando para trás a multidão de heróis quotidianos que concretizaram vinte anos de frágil mas efectiva liberdade no Afeganistão. Já hoje, um avião militar australiano levantou voo de Cabul com apenas 26 pessoas tendo espaço para transportar 128.
Caso para perguntar: ninguém mais merecia ir a bordo?
Quanto a Joe Biden, nada de novo. Reedita o triste papel desempenhado por Gerald Ford em 1975, em Saigão, e Jimmy Carter em 1980, em Teerão. Limita-se a repetir, com menos poder de síntese, o que Henry Kissinger declarou há 46 anos, a propósito do Vietname caído às mãos dos comunistas: «A boa notícia é que a guerra terminou. A má notícia é que a perdemos.»
Mais do mesmo. O actual inquilino da Casa Branca terá direito a um belo rodapé nos futuros manuais de história.