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Delito de Opinião

Brincar às independências

Pedro Correia, 23.09.15

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O actual mapa político da Europa regeu-se até 2008 por um princípio basilar da Conferência de Ialta: nenhuma independência unilateral deve ser reconhecida no Velho Continente ao sabor de conveniências de circunstância, sob pena de tornar cada vez mais instáveis as relações internacionais. Desenhar fronteiras de acordo com critérios étnicos, religiosos, linguísticos ou de tribo, com o aval de analistas politicamente correctos, pode ser uma tentação para alguns caudilhos regionais mas é um acto indigno de estadistas.

O perigoso precedente foi inaugurado nesse ano pela "independência" do Kosovo, caucionada pelos Estados Unidos para punir a Sérvia e estribada num inaceitável predomínio étnico que legitimaria - por exemplo - o imediato levantamento insurreccional no País Basco contra os estados espanhol e francês. Moscovo respondeu também em 2008 com o reconhecimento das "independências" da Abcásia e da Ossétia do Sul, protectorados russos na Geórgia. A criação destes "bandustões" no Cáucaso demonstrou uma brutal incoerência: os russos, aliados da Sérvia, tinham estado na primeira linha dos protestos contra a "independência" do Kosovo, já para não falar na asfixia do movimento secessionista na Chechénia.

 

Aberta a caixa de Pandora em pleno século XXI, parece que recuámos duzentos anos na história. Eis-nos novamente no início do século XIX, nacionalista e fragmentário. Com a Bélgica sempre prestes a implodir devido ao interminável conflito entre flamengos e valões. Com os húngaros que não deixam de agitar-se na Voivodina e na Transilvânia. Com galeses e escoceses, sem falar de parte dos irlandeses do norte, de costas viradas para Londres. Com as eternas clivagens regionais no frágil estado italiano, onde se elevam vozes radicais pela independência da Padânia, capitaneadas pela Liga Norte. Com as crescentes aspirações dos autonomistas corsos em clivagem aberta com o centralismo jacobino do Estado francês. Com as reivindicações históricas germânicas, ciclicamente renovadas em círculos extremistas, à restituição da Alsácia e da Lorena (em França) e de Trentino-Alto Ádige (na Itália). Com fortes minorias étnicas aspirando à reconfiguração do mapa político em países como a Letónia, a Macedónia e a Croácia. Com a guerra civil de média intensidade que se prolonga no leste da Ucrânia entre russófilos e russófobos. Com os problemas territoriais mal cicatrizados entre polacos e alemães, finlandeses e russos, húngaros e romenos. Com os conflitos seculares entre gregos e turcos, centrados na ilha de Chipre, dividida desde 1974.

 

Num mundo que se vai organizando em blocos regionais para enfrentar os desafios da globalização, a Europa caminha em passo trocado, separando-se em vez de se unir. Visto de outros continentes, aquele em que vivemos surge como um reduto cada vez mais frágil e bipolar, sedento de reavivar glórias passadas enquanto cede à permanente tentação da utopia.

Ressurge agora a pulsão nacionalista na Catalunha, que nunca foi um Estado independente. As eleições autonómicas de domingo estão a ser transformadas numa espécie de plebiscito à independência da região, que goza de órgãos políticos próprios dotados de amplos poderes, reconhecidos na Constituição espanhola de 1978. E alguns elementos mais extremistas sonham já com uma "grande Catalunha livre", que integre o arquipélago das Baleares, parte do País Valenciano, uma parcela oriental do território aragonês, Andorra, a Alta Sardenha e o departamento francês dos Pirenéus Orientais, onde se integra  o Rossilhão. Tudo em nome de pretensos direitos históricos, mais que contestáveis.

O presidente autonómico, Artur Mas, já prometeu que proclamará em 2017 a "República Catalã" se as forças pró-independência tiverem maioria simples no elenco parlamentar que resultará deste escrutínio - bastando-lhes para o efeito um lugar a mais do que a soma das forças constitucionalistas. É uma tese absurda: não existem declarações de independência quando apenas metade da população, no máximo, aspira a tal objectivo. A independência ou é um projecto colectivo ou não é nada. 

A Catalunha será sempre os que os seus cidadãos decidirem, mas num quadro de legalidade democrática. Não será uma minoria iluminada de catalães a decidir por todos. Muito menos os catalães "bacteriologicamente puros", que aliás são minoria na Catalunha. As famílias catalãs e castelhanas ou andaluzas ou valencianas ou aragonesas estão misturadas há séculos. E ainda bem.

 
A Europa - cada vez mais interdependente - não deve brincar às independências, dando lastro aos nacionalismos. Sempre redutores, sempre identitários, sempre com traços xenófobos centrados no ódio ao "estrangeiro".

Não esqueçamos: no século XX os nacionalismos exacerbados, postos em confronto, provocaram 80 milhões de mortos no Velho Continente. Tudo quanto contribua para o seu arrefecimento - e já nem falo na sua diluição - será sempre uma boa notícia para a Europa.

2 comentários

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    Pedro Correia 23.09.2015

    Esse conceito dos países muralhados, como entidades estanques, está totalmente ultrapassado. Sobretudo numa Europa sem fronteiras, onde a livre circulação é pedra basilar - começando pela livre circulação de ideias.
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