Bilhete-postal do fim do mundo: Ushuaia
Foi com um sorriso aberto e um “Hola chicas!” que Ada nos abriu a porta do Los Calafates B&B, que gere com o filho Hernán. A quase 12 mil quilómetros de distância de Portugal e depois de várias horas de viagem desde Buenos Aires – autocarro, avião, táxi – esta recepção calorosa e familiar fez-me sentir como se chegasse a casa. O frio patagónico ficava lá fora e o fim do mundo já não me parecia assim tão distante do nosso rectângulo do outro lado do Atlântico. Intuindo que estaríamos cansadas, Ada não nos maçou com grandes pormenores e deixou para mais tarde os protocolos burocráticos habituais: deu algumas informações básicas e levou-nos de imediato ao nosso quarto. Uma amostra da informalidade e simpatia que iria ser o mote quase generalizado dos dias que passámos em Ushuaia.
Conquistada pelo estômago e pela simpatia
Na Primavera austral o céu mantém-se claro até tarde, o que ajudou a ajustar o nosso relógio interno para as 4 horas de diferença daquelas longitudes. Se estivéssemos por cá, jantar quase à uma da manhã seria inconcebível para nós. Só que em Ushuaia ainda não eram 10 da noite, e o almoço já era uma vaga recordação. A pizaria Dieguito – uma sugestão da nossa anfitriã – estava à cunha, mas assim que entrámos o dono saudou-nos com uma alegria tal que parecia que nos conhecia há anos. De imediato arranjou uma mesa para as “chicas”, e enquanto nos acomodou bombardeou-nos com as habituais perguntas de quem percebe que está a receber forasteiros de terras longínquas – o que, de resto, em Ushuaia não é difícil, atendendo a que a cidade está distante de tudo, mesmo se só pensarmos na Argentina. Suspeito também que o nosso espanhol mal-amanhado e com sotaque europeu tenha contribuído para essa conclusão…
A atmosfera estava tão abafada que tivemos de ficar só de t-shirt – tal como toda a gente, de resto. Tirando o calor quase excessivo, o ambiente podia ser o de uma cervejaria portuguesa sem pretensões. Mesas e cadeiras simples, de madeira escura envernizada; caixas de cerveja local (com a marca “Beagle”, como o canal que banha a cidade) empilhadas a um canto; paredes e tecto com fotografias várias, cartazes e t-shirts de clubes de futebol, a condizer com o jogo que passava no ecrã de televisão, e uns quantos troféus expostos sobre uma estante. No meio da aparente agitação, a comida foi servida rapidamente, estava saborosa, e o serviço esbanjou simpatia.
Gostámos tanto que no dia seguinte voltámos lá ao almoço, desta vez para provar aquele que é um dos petiscos gastronómicos mais populares em toda a Argentina: as empanadas. Receita herdada da colonização espanhola, no século XVI, foram adaptadas aos ingredientes locais, e cada província da Argentina desenvolveu sua própria fórmula, criando uma variedade infindável de recheios e formas de preparação. A empanada tornou-se especialmente popular entre os trabalhadores rurais, pois era fácil de transportar e consumir em qualquer lugar. Embora parentes das empadas ibéricas, as argentinas são maiores e de formato semicircular ou oval. Têm geralmente uma massa mais fina e flexível, e mais recheio, o que as torna menos pesadas e muito ao meu gosto. Em Ushuaia, as do Dieguito são assadas no forno de barro onde cozinham as pizas e entraram directamente para a lista das minhas delícias favoritas no mundo, seguidas de perto pelas de marisco do quase vizinho restaurante Doña Lupita.
Entre a montanha e o mar
Na língua do povo yámane (ou yagán), que habitou a parte sul da Terra do Fogo durante mais de 10 mil anos, Ushuaia significa “baía ao fundo”. Para mim, o nome soava-me a vastidão do mar, vento agreste e solidão, mas não podia estar mais enganada. Quando a vi de longe, Ushuaia pareceu-me uma pequena cidade alpina, encaixada entre as montanhas pintadas de branco e a água parada do Canal Beagle. Mais perto, apercebi-me da cacofonia arquitectónica generalizada, como se tivessem decidido fazer dela um mostruário de todos os tipos de edifícios que é possível construir, em todos os estilos e com todos os materiais. Há de tudo, desde o modernismo geométrico com betão e vidro ao utilitário nórdico de chapa ondulada, passando pelos chalés em madeira e os prédios “pintados” de pedra ou tijolo, iguais a tantos outros que vemos por aí.
Na zona mais plana e movimentada da cidade, as ruas formam um quadriculado perfeito, que se vai deformando à medida que a área urbanizada se afasta do mar e trepa pela encosta. A amálgama de estilos contagiou o comércio e abundam os letreiros com letras garrafais e os anúncios garridos, entre o folclórico e o kitsch, aqui e ali uma loja mais sóbria ou um café com uma decoração mais clean. É a Europa nórdica desconjuntada pelo “jogo de cintura” sul-americano e apimentada pelo sangue quente da herança espanhola. Ushuaia pode estar no fim do mundo, mas a verdade é que vivem ali quase 80 mil almas, número que engrossa substancialmente durante os meses da época alta do turismo.
A avenida que acompanha a curvatura da baía ao longo da cidade é rota de passeio agradável, mesmo sob um céu a ameaçar chuva. Não é que haja muito para ver… Deixando para trás as casinhas dos operadores turísticos e os nada atraentes barracões e contentores armazenados no porto, sobra a vista sobre o Onashaga (o nome do Canal Beagle na língua nativa), imperturbável como um lago, mimetizando a cor cinza da atmosfera. Há veleiros de recreio espalhados pela baía, entre outras embarcações coloridas, e um navio de cruzeiro mais ao fundo. Encostado a uma espécie de dique de cascalho, meio adernado, o rebocador Saint Christopher já viu melhores dias, e parece recordar com nostalgia a sua época de glória, quando se chamava HMS Justice e participou no Dia “D” da Segunda Grande Guerra, desembarcando tropas aliadas na Normandia. Abandonado há quase 70 anos após uma avaria, já faz parte da paisagem, e em todo este tempo a cidade decerto mudou muito mais do que ele.
Para lá da água, estendem-se até ao infinito montanhas negras marcadas por dedos de neve, cumes brancos entrelaçados num manto de nuvens baixas. São uma bela moldura e por isso, turismo oblige, a palavra Ushuaia em letras garrafais não podia faltar, completando o enquadramento ideal para as fotos da praxe.
Uma via pedestre de cimento pintado com formas coloridas encaminha-nos para o local a que chamam Paseo de los Antiguos Pobladores. Estão ali algumas das construções mais antigas da cidade, agora convertidas em espaços culturais e institucionais. A Casa Pena, pintada de amarelo e verde, é hoje o Museu da Cidade, onde uma exposição etnográfica conta a história de Ushuaia desde a sua origem. Na Casa Torres foi instalado o museu “Pensar Malvinas”, que expõe informação sobre a guerra que, em 1982, agitou a opinião pública em todo o mundo e terminou com o Reino Unido a manter a soberania (detida desde 1833) sobre o arquipélago do Atlântico Sul, situado perto da costa argentina, a que os britânicos chamam Falklands. A Câmara de Turismo da Terra do Fogo funciona na discreta e bonita Casa de Lisardo García, revestida de chapa ondulada cinzenta embelezada com madeiras pintadas de branco. Mas o edifício que mais chama a atenção, pela sua arquitectura extravagante, é a antiga Casa Bebán, que agora é centro cultural e de exposições. Num arroubo de excentricidade, o primeiro dono, Tomás Bebán, mandou vir da Suécia toda a estrutura da sua futura casa de família, cuja montagem ficou terminada em 1913.
Depois há que ir ao melhor miradouro da cidade, o Paseo del Centenario. Uma escadaria moderna, com formato irregular e vários pontos de paragem, coroada por um monumento que homenageia as várias correntes migratórias que deram origem a Ushuaia. Renovado em 2021, e apesar do pedido de cuidado feito pelo Intendente Walter Vuoto aquando da reinauguração, já apresenta infelizmente alguns sinais do vandalismo que desfigura, cada vez mais, as zonas urbanas: tags (a que incorrectamente é hábito chamar grafitis) pulverizadas sobre as “espigas” de cimento que fazem parte da estrutura da escadaria. Nem as terras do fim do mundo escapam à falta de civismo e de respeito, e só mesmo a vastidão e serenidade da paisagem que se nos oferece a partir do miradouro conseguiu apaziguar o meu espírito.
De presídio a museu
Mesmo depois da passagem de Fernão de Magalhães pela região, a Terra do Fogo permaneceu pouco atractiva para os colonizadores europeus. Só na segunda metade do século XIX é que um pequeno grupo de missionários britânicos decidiu fundar na ilha a primeira povoação permanente, a que chamaram Ushuaia. Terminadas as guerras pela independência, a Argentina decidiu estender-se para sul e lançou a Campanha do Deserto, de que resultou o quase extermínio dos povos indígenas que habitavam a Patagónia e a Terra do Fogo. Como tentativa de consolidar a posse da região, o presidente argentino determinou que fosse criado em Ushuaia um presídio para criminosos reincidentes e prisioneiros políticos, cujo trabalho seria criar as infra-estruturas de uma cidade e apoiar os colonos que ali quisessem instalar-se.
Os primeiros presidiários chegaram em 1896, e em 1920 o Presídio já contava com cinco pavilhões, 380 celas onde chegaram a estar alojados 600 reclusos. Foi encerrado em 1947, passando para o domínio da Armada Argentina e a ser usado como armazém. Durante a Segunda Guerra Mundial, desempenhou um papel importante como base de abastecimento para as forças aliadas que operavam na Antárctida. Depois de desmilitarizado, abriu em 1995 como museu. O edifício principal tem cinco alas radiais que convergem para um pátio central coberto. Cada ala tem dois pisos, por onde se espalham os vários espaços expositivos diferentes que englobam o Museu Marítimo de Ushuaia, o Museu do Presídio, o Museu Antárctico, o Museu de Arte Marinha e uma galeria de arte.
Conhecida como a prisão do “Fim do Mundo”, os prisioneiros enviados para esta zona remota da Terra do Fogo eram homens que a sociedade queria esquecer, e o local não poderia ser mais adequado para este fim. Num lugar tão inóspito e afastado de tudo, de pouco adiantaria tentarem fugir. As duras condições de vida, o clima extremo e a localização remota tornaram-na numa das prisões mais difíceis do mundo. Caminhar pelos corredores gélidos, entre celas pequenas e sombrias, dá-nos uma (pese embora muito vaga) ideia da austeridade da vida aqui. A arquitectura é funcional, sem ornamentos, um reflexo claro do propósito do presídio: conter, não confortar.
Várias celas têm “bonecos” dos presos mais famosos que aqui estiveram, outras são representativas das condições em que os prisioneiros viviam. Colchões finos, paredes frias, e uma luz que entra apenas por pequenas janelas relembram que este lugar foi, muitas vezes, sinónimo de sofrimento.
Os detidos eram obrigados a executar trabalhos duros. Os mais perigosos tratavam da limpeza e manutenção do edifício, enquanto os que tinham melhor comportamento saíam para trabalhar fora de portas. Enfrentavam não só as condições precárias da prisão, mas também o clima severo de Ushuaia, com ventos cortantes e temperaturas que raramente eram amigáveis. De certa forma, Ushuaia deve muito da sua fundação a estes homens. Foram eles que construíram as infra-estruturas da cidade – ruas, edifícios, instalação da electricidade e do telefone. Eram bombeiros, construíram a primeira prensa tipográfica, e eram também lenhadores.
A lenha era matéria abundante nas densas florestas da região, e essencial para aquecer as casas e manter a cidade a funcionar naquele que é um dos climas mais frios do planeta. Para transportar a madeira até à cidade, foi construída em 1913, pelos próprios prisioneiros, uma linha férrea estreita. Chegou a atingir uma extensão de 25 km, dividindo-se em dois ramais em direcção ao que é hoje o Parque Nacional. Era conhecido como “o comboio dos presos”, e o que resta da linha férrea é hoje em dia uma atracção turística. Partindo da Estação do Fim do Mundo, situada a 8 km do centro da cidade, os turistas são transportados em vagões de madeira que evocam o passado, puxados por locomotivas a vapor. A bordo, um narrador conta a história do presídio e dos prisioneiros, enquanto a composição avança entre a floresta nativa, num percurso de 7 km que termina à entrada do Parque Nacional Tierra del Fuego.
Os restantes museus do complexo são interessantes, embora algo fastidiosos. Entre maquetes de embarcações, fotos antigas, documentos, objectos e recriações de vários tipos, há todo um mundo de informação sobre a história e a vida no extremo austral da Patagónia argentina, incluindo a região antárctica. Mas o Museu do Presídio foi mesmo o que mais me interessou e impressionou, sobretudo a ala que está mais “arruinada”, e portanto mais se assemelha ao aspecto que teria quando era uma prisão. Visitá-la é um misto de fascínio e melancolia. Não podemos deixar de pensar na brutalidade da vida no início do século XX e no que isso significava para aqueles homens. Ao mesmo tempo, o museu é um testemunho da capacidade humana de se adaptar, resistir e, em alguns casos, redimir-se.
Encontros não imediatos com pinguins
Uma das razões pelas quais Ushuaia é tão famosa é o facto de ser o porto de onde saem os cruzeiros para a Antárctida. Outra é por oferecer a possibilidade de um passeio no Canal Beagle com passagem pela Isla Martillo e pela Estancia Harberton (estancia é o nome que aqui dão às grandes propriedades agrícolas). No nosso terceiro dia nas terras do fim do mundo, os deuses estavam bem-dispostos e, depois de uma véspera e madrugada cinzentas, brindaram-nos com um sábado de sol esplendoroso, que levou os ushuaienses a encherem a Playa Larga – uma faixa comprida de areia terrosa meia dúzia de quilómetros a leste da cidade – e ofereceu, a mim e muitos outros, um passeio tranquilo pelo Canal.
Foi por aqui que passou, em finais de Janeiro de 1833, o navio britânico HMS Beagle, comandado por Robert FitzRoy e levando a bordo um jovem Charles Darwin, na viagem exploratória em que o naturalista colheu as primeiras informações que serviram de base à sua teoria da evolução das espécies. Com propósito bem menos ambicioso, o catamarã Ushuaia Explorer passeou-nos durante cinco horas pelo azul reluzente do Canal Beagle, com os olhos postos nas margens orladas de árvores e nos cumes nevados dos cerros.
A cidade foi ficando mais e mais pequena, enquadrada pelo Glaciar Martial e pelas montanhas Olivia e Cinco Hermanos, e cedeu o protagonismo às ilhas e seus habitantes: os corvos-marinhos da Isla de Los Pájaros; a numerosa colónia de leões-marinhos da Isla de Los Lobos, com a sua pelagem cinza-acastanhada quase camuflada pelas rochas onde preguiçam ao sol; e o já centenário Farol Les Éclaireurs, as suas riscas contrastando com o ambiente cerúleo. Com 11 metros de altura e 3 de diâmetro, revestido de mosaicos brancos e vermelhos, a sua luz vê-se à distância de 13 km. Funciona desde 1920, e há quem lhe chame o Farol do Fim do Mundo – daqui até à Antárctida são apenas cerca de 1100 km.
O Canal Beagle é também linha de fronteira entre a Argentina e o Chile, e no percurso passa-se ao largo daquela que é verdadeiramente a localidade mais meridional do continente americano: Puerto Williams, na ilha Navarino, em território chileno. Com cerca de 1800 habitantes, foi aqui que viveram os últimos descendentes puros dos Yagánes, o povo indígena que habitou a Terra do Fogo durante mais de 10 mil anos. A última yagán pura, Cristina Calderón Harban, faleceu em Fevereiro de 2022 vítima de complicações associadas à COVID-19. Tinha 93 anos e era também a única falante nativa da língua yagán.
Mas as estrelas maiores deste passeio de barco são os pinguins da Isla Martillo, informalmente conhecida como Pingüinera. A ilha é local de nidificação de três espécies de pinguins: o pinguim-de Magalhães (Spheniscus magellanicus), o pinguim-gentoo (Pygoscelis papua) ou pinguim-de-sobrancelha-branca, e o pinguim-rei (Aptenodytes patagonicus). Como a ilha é uma reserva natural, apenas é permitido o desembarque a um número muito reduzido de pessoas em cada dia. Estes passeios, em que é possível andar perto dos animais, são obrigatoriamente feitos com um guia oficial. Só um operador os disponibiliza, e têm um custo bastante mais elevado. Nos tours mais comuns, as embarcações apenas se aproximam da praia, para nos permitir ver a colónia onde nidificam. Seja como for, observar estas aves no seu habitat natural, mesmo que de longe, é entretenimento garantido, de tão patuscos que são quando se movimentam em terra. Em contraste, quando decidem atirar-se à água tornam-se velozes como torpedos, que a captura de comida é coisa séria, mais ainda se tiverem filhotes para alimentar. Neles como em nós, a sobrevivência obriga a aguçar certas capacidades.
Natureza selvagem
A ligação de Ushuaia com Buenos Aires por via terrestre é feita pela Ruta 3, o trecho mais a sul da Rodovia Panamericana (a estrada mais longa que é possível percorrer de carro à superfície da Terra, num total de 17.848 km). A Ruta 3 atravessa a parte norte da cidade e termina 18 km a oeste, nas margens da Baía Lapataia, já nos domínios do Parque Nacional Tierra del Fuego. Foi este o destino do nosso último dia na Terra do Fogo argentina, à distância de uma mera meia hora de autocarro.
A primeira paragem do trajecto é no início do Parque, perto do pontão onde se encontra o Correio do Fim do Mundo, uma improvisada estação de correios/loja feita de madeira e chapa ondulada que alguém teve a ideia de rentabilizar turisticamente como o último local antes da Antárctida de onde é possível enviar correspondência, e por isso ponto obrigatório de visita para muita gente. Fica na margem da Baía Ensenada Zaratiegui, de onde parte um dos trilhos mais populares do Parque, a Senda Costera – que, no entanto, decidimos ignorar para seguirmos até à última paragem, junto à Baía Lapataia, o ponto mais austral do planeta que pode ser atingido por via rodoviária. Na língua dos Yagánes, o nome deste braço do Canal Beagle significa “baía das florestas”, e foi a partir daqui que explorámos vários percursos de caminhada na área mais perto da fronteira chilena.
O Parque Nacional Tierra del Fuego é a área protegida mais austral da Argentina. Estabelecido em 1960, abrange um território com cerca de 63 mil hectares, dos quais apenas 2 mil estão abertos ao público. Conjuga ambientes de montanha, de floresta andino-patagónica e aquáticos, numa grande diversidade de cenários, todos eles maravilhosos. A entrada é paga e permite o acesso ao Centro de Visitantes Alakush (que disponibiliza informações sobre o parque e uma exposição cultural e histórica), a lugares para acampar, e a quinze trilhos pedestres, desde os mais curtos e fáceis aos mais exigentes, que demoram várias horas a percorrer.
A paisagem do Parque é marcada por uma mistura de florestas de lenga (Nothofagus pumilio) e ñire (Nothofagus antarctica) – duas espécies de árvores típicas da Patagónia – e por amplas turfeiras, além de rios e lagos como o Lago Acigami (ou Roca) e o Lago Fagnano. A flora é diversa e adaptada às condições extremas do clima, com temperaturas baixas e ventos intensos. As turfeiras desempenham um papel crucial no armazenamento de carbono e na regulação ambiental, mas são sensíveis às mudanças climáticas e ao impacto humano.
A fauna é variada e os “encontros imediatos” com animais são frequentes. Inclui espécies como o guanaco, a raposa-cinzenta e o castor canadense – um invasor introduzido no século XX, cuja construção de represas danifica ecossistemas e se tornou uma ameaça às florestas locais. É também habitat natural de várias aves, como o ximango (ave da família dos falconídeos), o pato-de-crista e o albatroz. A ave mais abundante é o ganso-de-magalhães (Chloephaga picta), que encontramos um pouco por todo o lado e foi, por isso mesmo, escolhido para símbolo do Parque.
Para quem gosta de acampar em lugares pouco transformados pela mão humana e com trilhos que proporcionam caminhadas e vistas fantásticas, o Parque Nacional Tierra del Fuego é um paraíso. Um dos espaços destinado aos campistas fica junto à Laguna Verde, um belo recanto formado pelas curvas do rio Lapataia. O nome, como é fácil de ver, vem da cor da sua água. Com o Cerro Guanaco como pano de fundo, é um dos sítios mais populares do Parque, sobretudo pela sua acessibilidade. As comodidades de apoio aos campistas são básicas, mas o ambiente à volta compensa tudo.
À tarde, antes do regresso à cidade, piquenicámos nas margens do Lago Acigami, com vista para os cerros que se erguem já em território chileno, para lá de uma fronteira invisível a que a natureza se mostra alheia – tanto a superfície tranquila das águas do lago como as árvores e montanhas que o rodeiam se mantêm imperturbáveis, indiferentes ao facto de pertencerem a um país ou a outro. A grandiosidade do mundo natural não se preocupa com estas minudências humanas, pese embora sofra com os resultados dos muitos atentados de que é alvo da nossa parte.
Tal como tantos outros lugares do planeta, o Parque Nacional Tierra del Fuego enfrenta desafios ambientais significativos. As alterações climáticas também ameaçam a biodiversidade da região, ao afectarem o equilíbrio das turfeiras e alterarem os padrões de precipitação e temperatura. Além disso, a pressão turística é crescente, e exige uma gestão cuidadosa para minimizar o impacto humano nestes frágeis ecossistemas. A harmonia entre o turismo responsável e a preservação ambiental é essencial para garantir que este tesouro natural vai continuar a existir e a ser usufruído pelas gerações vindouras.