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Delito de Opinião

Ba e a polícia

jpt, 28.01.19

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Ba disse que a polícia é uma "bosta" (nota: "bosta" é um termo canónico). Muita gente indigna-se, pois Ba é do BE e não deveria dizer isso. Torço o nariz. Não sei se ele tem razão na interpretação do caso que causou as declarações - pelo que se vê nas curtas imagens, feitas pela vizinhança, é um típico caso de "porrada no beco", com os cidadãos a investirem contra os polícias ali convocados para sanarem a situação. E estes a responderem. E daquele pouco que tenho lido de Ba e seus correligionários - alguns deles demagogos com palco usual no jornal "Público" e galões universitários - acho aquele discurso histriónico e sob uma ideologia execrável: são racialistas, e no caso dos académicos a adesão a essa ideologia é uma estratégia de obtenção de recursos, económicos e estatutários. Mas isso são contas de outros rosários.

Ba é um assessor do grupo parlamentar do BE. É um emprego. Presume-se que o exerça devido a que o BE nele tenha confiança política. Mas não representa a coligação estalinista-maoísta. É empregado. Não é autarca, não é deputado, não é membro do governo. Se o fosse a crítica às suas declarações teria em conta essas funções de representação (e/ou executivas). Neste caso é "apenas" um cidadão a ter declarações. É conotável com a tal coligação? Sim. Mas qualquer cidadão pode ser conotável com um movimento político. Melhor dizendo, tem o direito de ser conotável com um movimento político. Assim sendo, se o que Ba diz é conotável com o BE e se isso é positivo e negativo é apenas problema do tal BE - raciocínio que não se aplica quando deputados da coligação ecoam essas posições, pois a função de representação tem outras implicações. Mas isso, outra vez, são contas de outros rosários. Há quem resmungue que Ba é dirigente da SOS Racismo e como tal não poderia dizer coisas destas. Mas essa é uma organização da sociedade civil, representa-se a si própria, aos seus membros. As declarações de Ba podem ou não ser prejudiciais para a organização, podem ou não vinculá-la, é problema deles.

Ou seja, pode-se criticar o conteúdo das declarações de Ba, a sua pertinência. Mas nunca pôr em causa a pertinência de as proferir. Esta é algo que deverá ser questionado (não é a pertinência do seu conteúdo, é o acto de as realizar) por aqueles que pertencem à sua organização e pelos seus empregadores. E isto é límpido como água cristalina, como se diz na língua dos imperialistas racistas e dos afro-americanos. O coro de ofendidos, que refutam não o conteúdo mas tê-las ele proferido, é um coro ignaro, desafinado. E hipócrita.

Entretanto o deputado do PSD João Moura manda Ba à "bardamerda" (nota: "bardamerda" é um termo não canónico). Moura é deputado. Não deveria dizer coisas destas, é representante do eleitorado. Ou por outras palavras, não é empregado do PSD (ele se calhar sente-se bem empregado, mas isso é outra coisa), é seu representante. Mas, pior do que citar o antigo Primeiro-Ministro Pinheiro de Azevedo (que utilizou o célebre termo em invectiva impessoal, um desabafo, "vão bardamerda com o fascista", que era o termo de moda que os sindicalistas do PCP contra ele utilizavam), é a patetice de Moura, que vem dizer a posteriori que não utilizou o termo com vontade insultuosa. Patetice pura. E conviria que um deputado não fosse tão pateta. Ou que, pelo menos, não o mostrasse.

Mas as declarações deste João Moura são algo bem pior do que patetice. Pois mostram bem o fascistazeco que habita no pobre deputado - e nos seus apoiantes, que os deve ter, caso contrário não seria parlamentar. Ba afirma que tem sido ameaçado. Há imagens dele a ser confrontado por indivíduos do PNR. Estes não foram violentos, foram incisivos, e quem se expõe em público arrisca este tipo de confronto, pois "quem anda à chuva molha-se". Mas as coisas não são tão simples. Por um lado porque Ba afirma que tem sido ameaçado e, infelizmente, isso é de crer. Em segundo lugar porque este PNR é comandado por um homem (a quem a RTP de serviço público dá espaço de antena por se candidar a chefiar uma claque da bola; a quem um Goucha entrevista longamente para tentar ganhar audiências contra a Cristina) - errata: nos comentários um leitor avisa que o PNR não é comandado, mas apenas integrado por esse indivíduo - que foi preso por cumplicidade num assassinato cometido pelos militantes desse partido, cujo móbil foi exactamente o facto do assassinado ser ... negro. Ou seja, é normal que Ba se preocupe. E é totalmente curial que solicite protecção policial.  A polícia existe para isto, é esse o seu dever numa sociedade liberal, democrática, o de proteger a vida dos cidadãos (já agora, precavendo ressalvas de comentadores "inteligentes", sendo eles naturais ou estrangeiros, residentes ou turistas, "originários" ou selenitas, neo-nazis do PNR ou estalino-maoístas com frescuras new age). Ao apoucar esse direito, ao insultar Ba por solicitar protecção, o deputado Moura mostra assim o quão está longe de compreender o que é o chamado Estado de direito, democrático. É um morcão? É. Mas, acima de tudo, e talvez nem o saiba, talvez seja apenas uma besta, mas é uma besta fascistóide.

Há muitos anos, 30 já, Rushdie publicou "Os Versículos Satânicos" e foi condenado à morte pelo poder iraniano. Isto foi antes da I guerra do Golfo e da expansão do terrorismo do fascismo islâmico. A abjecção por essa via era bem menor na Europa. A esquerda europeia balbuciou um pouco com essa "fatwa", entre a ignorância do que aquilo era e o estupor. Os comunistas gostavam do Irão, porque anti-americano. E aqueles que então eram ainda o embrião desta "nova" esquerda identitarista (os neo-comunistas) também. Estes, tal como hoje, à menor aragem já espirravam referências a Foucault. O qual, no seu desprezo pela democracia, pela razão, pelo ocidente e pelos EUA (apesar de adorar os prazeres de Frisco, onde terá adoecido mortalmente) fora um grande defensor da teocracia homofóbica e falocrata iraniana, sob o lema que perseguiu, o "tudo contra o Ocidente" (excepto, claro, os ares "liberais" de Frisco. E a universidade francesa). Um apreço que se mantém, basta ver como estes identitaristas actuais se indignam mais com um barman dizer que "não tem copos com paneleirices" do que com as penas de morte aos nossos, ateus, ou aos homossexuais, lá pelo Irão foucauldiano ou sítios religioso-politicamente aparentados. Nesse ambiente, de "pacto germano-soviético", de colaboracionismo com o fascismo islâmico, por aversão aos EUA e por ademanes a la Foucault, a tal esquerda europeia algo balbuciou. Entre o tal estupor e o desagrado com a "blasfémia", num "não havia necessidade", a la Diácono Remédios, que Rushdie tivesse sido tão desbragado na sua utilização do corão. 

À direita foi diferente. O escritor fora um crítico do poder tatcheriano. E por isso vieram invectivá-lo por pedir protecção estatal (policial), como se isso fosse paradoxal. O desagrado com o escritor advinha também do repúdio pela "blasfémia", esse refúgio anti-liberdade de expressão que o modelo de "secularização" anglófono (génese do multiculturalismo que depois grassou) carrega, isso de que temos de respeitar as religiões (o que é completamente diferente de respeitar a liberdade de culto). Enfim, devido ao seu repúdio pelo direito à blasfémia e com a oposição a Tatcher, a direita anti-Estado de Direito britânica invectivou escritor e sua necessidade de protecção. Depois, com o tempo e a expansão do terrorismo islâmico, esse repúdio baixou. Rushdie passou a ser pensado (quando ainda o é) como uma das vítimas, e não apenas como um alvo (algo) merecido, devido ao seu "desrespeito".

Ba não é Rushdie, claro. E o PNR e outros feixes de holigões não são o estado iraniano nem as organizações fundamentalistas islâmicas. Mas em termos abstractos as situações são algo similares. Até porque temos em Portugal antecedentes de violência rácica por causas políticas, até mortal. E mesmo que não os tivéssemos. Como tal Ba tem não só o direito inquestionável de pedir protecção policial, independentemente do que pensa sobre a acção policial. Tem também o dever, cívico, de se proteger. Incompreender isto é incompreender a democracia. 

Que um deputado não o perceba, que mande Ba à merda por isto, é inaceitável, e mostra o miserável intelecto que tem, e a sua visceral aversão à democracia. E o PSD deveria perceber o que o Pedro Correia aqui deixou, com ironia, isso de que é hora de serrar fileiras. E expurgar-se deste Moura e de holigões similares que por lá andem. Aboletados, em busca de empregos estatais ou comissões.

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