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Delito de Opinião

B-a-ba

Maria Dulce Fernandes, 24.07.22

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Não me lembro de ter contado que comecei a falar com 6 meses (foi há tanto tempo!).
Não fui aquilo a que na altura se chamava um bebé Nestlé, não tinha aquele atractivo olhar azul cristalino e bochechas rosadas, encimados por fulvos e brilhantes caracóis. Era uma trinca-espinhas normal com grandes olhos castanhos e cabelo da mesma cor, que nasceu com o condão de repetir tudo o que ouvia desde tenra idade.
Claro está que em competição com uma arara decerto não levaria a melhor, mas rezam as crónicas que falava pelos cotovelos e que desde que pronunciei a minha primeira palavra - guardanapo - nunca mais me calei. A Mãe contava orgulhosa que houve entrevistas à família para o jornal local e que com 10 meses contei para um gravador de bobina (inovação tecnológica da altura) a história do Lobo e dos Sete Cabritinhos, recostada no sofá vermelho da avó com o livro no colo, virando as páginas e modulando as respirações e os compassos de espera, como uma verdadeira profissional da oratória Grimiana.
 
Como é óbvio, não tenho qualquer recordação dos meus tempos de vedeta de bairro e se algo me ficou do meu génio oratório, foi a paixão pelas palavras, sobretudo pela palavra escrita. 
Mesmo nos meus anos académicos, a minha retórica era largamente suplantada pelos jogos de letras, que os meus dedos faziam deslizar pelo papel como pequenas peças de puzzles coloridos e harmoniosos, num bailado singelo e preciso, até formarem o desenho que a minha imaginação pintara.
 
Lembro-me como se fosse hoje da mala castanha com fivelas, do estojo de madeira com uma tampa deslizante que fazia as vezes de régua e que continha um lápis, uma borracha e um apara-lápis, lembro-te tão bem da sebenta cor de papel pardo com um estudante na capa, do caderno de duas linhas e da Cartilha Maternal João de Deus. 
As letras eram velhas conhecidas, como desenhos e formas. A sua sonoridade, o valor de cada uma e a ciência de saber juntá-las em dissílabos e polissílabos, formar palavras, frases, parágrafos e textos, foi a cartilha do b-a-ba que me ensinou. 
 
A primeira vez que li sozinha uma notícia de jornal, inchei de orgulho. Toda a vizinhança ficou a saber que a Feira Internacional de Lisboa estava transformada numa galeria de arte infantil por ter em exposição os trabalhes de "O Natal visto pelas crianças", e quando perguntavam como sabia eu disso, retorquía toda lampeira: "Li no jornal, ora essa!"
 
Da cartilha depressa passei aos livros escolares que tinham capas patrióticas e crianças de braço estendido e sorrisos perfeitos, acrescentei ao material escolar um frasquinho de tinta permanente, uma caneta de aparo, um caderno pautado, um quadriculado e um de desenho, uma folha de mata-borrão e uma caixa com seis lápis de cor Viarco. Quando completei a quarta classe com vinte valores, o Pai ofereceu-me uma caneta Sheaffer numa caixinha forrada a cetim, que passou a ser o meu maior tesouro. Também me deu autorização para tirar livros das estantes e ler.
 
Mal ele sabia que acendera o rastilho da minha maior e mais explosiva paixão, aquela que dura e durará tantos dias quantos os que me forem permitidos andar pelas bandas de cá.

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