Aventuras de Uma Livreira Acidental
Há dias em que o coração de uma livreira acidental fica à beira de um enfarte de felicidade.
Hoje, a equipa da caixotaria começou a jornada num dos nossos pontos de entrega de livros, com a missão de se lançar ao desbaste. Isto quer dizer que nos atiramos aos sacos e caixotes que os doadores por lá vão deixando e vamos separando a mercadoria por temas, títulos para seguirem directamente para a livraria, outros para armazém, outros ainda para restauro ou para serem vendidos na internet. Uma trabalheira dos diabos, mas que alguém tem de fazer.
Para o final restavam três enormes caixotes em que ainda não tínhamos tido coragem de pegar, pelo tamanho e pelo peso.
Abrimos à cautela e fomos retirando o espólio. À primeira remessa, o meu coração começou a palpitar: saltaram-me logo para as mãos uns quantos José Régio antigos, aos quais se seguiram Stau Monteiros de que nunca tinha ouvido falar, mais umas quantas primeiras edições de poesia de primeira.
Ao segundo caixote estava perto da taquicardia quando começaram a aparecer Luiz Pachecos, um Ary dos Santos autografado, mais um Herberto Hélder muito antigo e mais uma data de volumes de Brecht iguais aos que existiam em casa dos meus pais.
O nível dos livros era de primeiríssima e, para além da alegria, a raiar a comoção, de os ter a passar pelas mãos, não nos foi alheio o sentimento de que serão certamente uma excelente fonte de angariação de fundos para a nossa causa.
Depois desta trabalheira, e com o coração em transe de gratidão por quem lá deixou os caixotes, venho para casa. Sabia que tinham passado por cá a deixar uns quantos livros provenientes do Porto.
É quando olho para o primeiro saco que o coração me cai aos pés. Não era nenhum Herberto Hélder, nem tão pouco um Luiz Pacheco. Era uma colectânea de peças de teatro infantil, compilada em 1948, onde constam duas peças escritas pelo meu pai, que foram levadas a cena vezes sem conta, mas de cujo livro original só temos um exemplar na família.
Não sei qual é o valor de mercado. Baixo, provavelmente. Mas no rating do meu coração, foi a melhor surpresa do dia. Foi a única que me levou às lágrimas.