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Delito de Opinião

Aureum Somnia

Maria Dulce Fernandes, 17.07.22

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Descer o Aconcágua não é para meninos. Um desafio para onde se vai derrotado à partida não é um desafio, é um suicídio de carácter, um apelo à depressão, o reconhecimento duma incapacidade de que se desconhece a deficiência. Partir com baixas expectativas e atingir o objectivo é superar-se, é deixar o ego elevar-se até ao cume, lá onde a altitude te prega partidas e te leva a sobrevoar Titicaca no dorso da Grande Serpente Emplumada até Chichén Itzá aparecer imponente recortada no dourado e laranja do pôr do sol.
Três dias depois da ressaca da hipobaropatia, o gelo da Terra do Fogo quebrava-se sob os meus pés molhados e inchados, como cascas de amendoim numa tasca rançosa na Route 66, onde depois de duas cervejas e um shot de tequilla o norte e o sul rodopiam agulhas sem magnetismo, dentro daquela bússola tresloucada a que chamamos cérebro e que norteia os nossos passos, quantas e quantas vezes rumo ao meridião.
Encontro-me amorfa e mole a seguir um tipo com uma lanterna, embrulhado numa manta escura com a aura delimitada pelo vapor do próprio bafo na noite gelada.
Deixou o sendeiro à entrada da casa baixa de pedra e lama de adobe, como o teria feito Paul Revere enquanto 39 homens à luz de muitas velas acesas pela discussão signavam a mudança num papel fibroso. 
Lá dentro o ar era quente e pesado, saturado de pisco e guano, mas o ceviche do grande peixe de Santiago que comi, sentada no chão junto ao lume crepitante enquanto Manolin contava histórias do mar, soube-me pela vida.
Cá fora os diamantes do Cruzeiro do Sul brilhavam contra o veludo azul de um céu de paraíso, onde uma lua redonda como um imenso queijo disparava raios de luz em todas as direcções, conferindo aos gelos glaciares uma cor opalina e um brilho irreal. Lembrou-me Opar, onde as mulheres são belas e os homens simiescos e alguns elos inferiores, onde o mistério espreita em cada pedra e em cada folha e a água do Nilo cai azul em terra de homens sei lei nem alma. Lembro-me do bar que o Dr. Livingstone tinha na margem do Lago Vitória onde serviam os melhores gins tónicos do mundo, perfumados com as neves do Kilimanjaro, que me deixavam de quatro na manhã da minha vida, como rezava o enigma. Mais um sonho que se tornou insolvente e faliu de tristeza e incompreensão.
Fui dormir, ou pelo menos tentei fechar os olhos, mas a ideia de Cibola bailava como um cisne de ouro não me dando paz. Estava tão perto ou longe de mais, não fazia ideia. 
Sabia que o dourado sol nascente traria Esteban e o grande condor, e aí a aventura recomeçaria, exactamente no ponto onde a imaginação vibrante de alvoroço a tinha deixado.

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