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Delito de Opinião

Assalto no apartamento

José Meireles Graça, 14.05.21

A questão é uma hórrida embrulhada jurídica e não vale por isso a pena escabichá-la, o que seria aliás difícil por causa do jargão tribunaloico, em parte necessário porque é imperioso que em Direito as palavras e os argumentos tenham um significado preciso, e em parte dispensável porque a muralha linguística foi construída para os leigos acreditarem que nas cabeças dos agentes da Justiça mora uma ciência inacessível e profunda. De resto, os tribunais ocupam-se da interpretação e aplicação das leis, e não da justiça segundo o sentido que a palavra tem para pessoas bem formadas, pelo que não cabe aos juízes, e bem, apreciar o asneirol do legislador, o que tudo ajuda a que por vezes se embrulhem os processos em discussões bizantinas.

Como na história que o Observador narra houve decisões contraditórias, em casos pretéritos também, e em futuros presumivelmente, o presidente do STJ entendeu que a jurisprudência deveria ser uniformizada, pelo expediente de pôr mais togas supremas a debruçarem-se sobre o assunto. Entendeu bem: que quem compra casas para nelas viver não saiba bem que direitos tem, os que tem quem as vende, e que papel podem desempenhar no processo os bancos em caso de insolvência, deveria ser matéria de trigo limpo farinha Amparo, não uma jigajoga de acções, trapalhadas e recursos de resultado incerto, sempre com o pano de fundo de que toda a gente está em igualdade de circunstâncias para suportar os custos do recurso aos tribunais – uma evidente falsidade. Daí que de então para cá a questão da segurança jurídica neste tipo de situações tivesse ficado resolvida.

Do ponto de vista da justiça material, o caso não era difícil: é claro que estando de um lado um banco e do outro um cidadão que investiu na compra de um imóvel para lá viver, querer o banco ressarcir-se do dano que sofreu por ter feito uma má avaliação do risco, ou por simplesmente as coisas terem corrido mal, a expensas dos pobres diabos que foram apanhados de boa-fé no desenlace, é um claríssimo abuso.

Abuso que tem tantos precedentes, e tantas implicações sociais, que seria bom que o legislador se intrometesse: a esquerda à esquerda do PS achará que os bancos não têm razão por definição, porque são pela maior parte privados, devendo ser públicos; e não é impossível que a direita entenda o contrário, por reflexo ou porque parte do princípio que a liberdade contratual é o valor supremo, e regras específicas para quando os bancos intervenham em certos negócios um atropelo.

Isto acham eles. Já a mim, que não tenho albardas doutrinárias que me toldem nem o sentido de justiça nem o prático, me parece que a actividade bancária é hoje de tal modo hiper-regulamentada que, não fosse a experiência histórica de a gestão pública ser invariavelmente um desastre (a verdadeira génese dos problemas do BES, por exemplo, foi a nacionalização, não a personalidade concreta de Ricardo Salgado), bem poderia ser exclusivamente pública;  e que pretender que há liberdade contratual a negociar com um banco é uma piedosa ficção, a somar a várias (competência da gestão e razoabilidade dos respectivos prémios, por exemplo,  entre muitas outras – não me ocupo disso agora, que estou com falta de vagar). Donde, uma severa vergastada na arrogância bancária poderia ter o salutar resultado de diminuir o contencioso, incentivar mais prudência na avaliação do risco e, quiçá, contraditoriamente, levar o sistema a virar-se mais para a produção de outros bens e serviços e menos para a construção civil.

O poder judicial põe e o Poder dispõe. Porque o senhor Presidente do STJ não podia adivinhar o que o Governo viria, nas costas da opinião pública e na da publicada, a fazer. E o que está a fazer, para além de sonegar informação ao Parlamento, o que só por si deveria ser matéria para um severíssimo puxão de orelhas de quem (não) garante o regular funcionamento das instituições democráticas, só não é um escândalo porque os meus concidadãos, da coisa pública, não querem saber nada, excepto se forem funcionários públicos ou reformados ou pensionistas, caso em que pretendem aumentos.

Pois bem, de Bruxelas vem isto: “Tendo em vista o reforço da posição do credor hipotecário (mortgage lender/creditor) proceder-se-á à revisão do regime de preferência do direito de retenção no confronto com a hipoteca’, pode ler-se na parte dedicada às insolvências e ações executivas”.

Sabe-se, desde a resolução do BES, que a UE quer que os bancos portugueses sejam espanhóis, coisa que aliás em parte já acontece, para “ganharem dimensão”, e que entretanto o que existe seja regulado por um balcão do BCE, a que por tradição se continua a chamar Banco de Portugal. Quer também a diminuição da tíbia concorrência, para a inépcia se repoltrear no sucesso e os clientes poderem ser saudavelmente explorados. Isto com alguma caridade, se se quiser acreditar que quem rumina estas coisas não faz parte do sistema de portas giratórias entre as instâncias politicamente decidentes e as administrações dos bancos.

Este caso demonstra três coisas, todas irrelevantes: uma que Portugal é uma região europeia onde com generosidade uma casta de inimputáveis parasitas (a burocracia europeia, incluindo eurodeputados, é isso) permite uma bandeira, um Parlamento livre para determinar tudo menos o essencial, uma tradição culinária própria, o fado e o galo de Barcelos; outra é que a independência (isto é, a que pode ter uma pequena nação) já desapareceu há muito; e a última que, a troco de dinheiro, a desprezível escumalha que com geral satisfação nos rege abdica de tudo para ter os meios de manter sossegada aquela crescente parte da população que depende do Estado para a sua sobrevivência.

Pena o episódio não ter tido lugar há três semanas: daria um óptimo epitáfio.

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