Ascender de quase nada a quase tudo
Cavaco Silva
Bastou um artigo de jornal e uma entrevista televisiva para se perceber, por contraste, o imenso vazio do principal partido da oposição. Cavaco Silva preencheu-o com a acutilância que já lhe conhecíamos de outros momentos. Incluindo aquele em que bastou um texto seu no Expresso sobre a «má moeda» para deitar por terra o precário executivo de Santana Lopes, no final de 2004.
Nessa altura, convém lembrar, Cavaco foi levado em ombros pelos mesmos que agora se apressaram a denegri-lo nas redes, em socorro de António Costa. Alguns, incorrigíveis, voltam a falar dele com indisfarçável preconceito social. Por ser da província, manter cerrada pronúncia algarvia e ter cumprido o ensino secundário numa escola técnica.
Costa, com instinto apurado, reagiu com esperteza. Visado nas palavras daquele que ocupou o palacete de São Bento entre 1985 e 1995, acusado de camuflar a ausência de espírito reformista com a espuma mediática debitada pelo seu aparelho de propaganda, o primeiro-ministro revelou que tenciona homenagear Cavaco em 2025, assinalando o 40.º aniversário da subida ao poder do professor de Boliqueime.
Bem pode fazê-lo: iniciou-se aí a década em que Portugal mostrou melhores indicadores económicos em democracia. Quando o PIB nacional chegou a crescer 7% em dois anos consecutivos, houve convergência real com os padrões europeus e a nossa economia se libertou do garrote imposto pela versão original da Constituição. Enquanto terminava o inaceitável monopólio da televisão pelo Estado, permitindo-se a existência de canais privados, e os reformados e pensionistas ganhavam acesso ao 14.º mês já auferido pelos trabalhadores no activo. Isto ajuda a compreender as duas inéditas maiorias absolutas conquistadas então pelo PSD.
Aníbal António Cavaco Silva – com duas outras maiorias no seu currículo, como candidato à Presidência da República, em 2006 e 2011 – tem hoje, aos 82 anos, suficiente autoridade moral para indicar a Luís Montenegro, recém-eleito 19.º presidente do PSD, qual o caminho a seguir.
Ao contrário do que aconteceu durante quatro anos sob a errática batuta de Rui Rio, o partido «deve ser muito claro na identificação do adversário político: o PS e o seu governo», sem se desviar por trilhos secundários. Para que Portugal «deixe de ser um país de salários mínimos».
Cavaco dispõe de autoridade noutro plano, ainda com maior significado. Por ser a prova viva de que o elevador social pode funcionar entre nós. Afinal de contas, foi o nosso primeiro – e até agora único, num quadro de sufrágio universal – Presidente da República civil não oriundo das endogâmicas famílias da classe média-alta alfacinha que há décadas se revezam nos circuitos de decisão. «Quem é o gajo?», perguntava Mário Soares quando ele ascendeu à presidência do PSD.
Alguém «de fora», que surgiu do quase nada e alcançou quase tudo. Superando com sucesso as delimitações territoriais dos clãs dominantes em Lisboa.
No fundo, tantos anos depois, é isto que alguns não lhe perdoam. No PSD também.
Texto publicado no semanário Novo.