As rémoras dos desgraçados
Como aqui disse há dias, existe uma enorme distância entre o que os apoiantes da causa palestiniana imaginam para esse país e o que este possa vir a ser na realidade. Mas, como acontece frequentemente, a projecção de um desejo turva a capacidade de análise e até ajuda a fingir que não se vê quem são ou o que fazem os demais parceiros de barricada.
Nesse postal referi o paralelo com o que se passou em 1979, durante a Revolução Islâmica no Irão. Antes de saber o que viria a ser o regime teocrático dos aiatolas, o intelectual de esquerda Michel Foucault afirmava que essa revolução era “a primeira grande insurreição contra os sistemas de poder globalizados”. Afirmou que o Islão político poderia expressar o desejo de uma forma diferente de modernidade, uma que não fosse simplesmente cópia do Ocidente e chamou a este movimento, que se formara, uma “espiritualidade política”, que revelava “a possibilidade de uma política diferente da que conhecemos no Ocidente”. O radar da esquerda está sempre sintonizado para algo que surja e que seja contrário ao mundo onde vive. Para alguns, como Foucault, o marxismo ortodoxo era demasiado autoritário e por isso o Irão Imaginário de então encaixava como uma luva no seu caderno de encargos. Logo depois, esse exotismo e aparente pureza moral do regime teocrático mostrou ao que vinha, os inimigos da revolução passaram a ser arbitrariamente enforcados em locais públicos, os direitos das mulheres regrediram vários séculos, a brutalidade e a violência vulgarizaram-se como ferramenta ao serviço do Estado. Perante isso, Foucault nunca se retractou. Não precisava porque na altura em que disse o que disse, estava cheio de boas intenções. E foram essas mesmas boas intenções, e virtude a rodos, que tripulou a dita flotilha. Se ouvirmos o que os clérigos palestinianos pensam sobre as demais causas da colorida tripulação que desde Agosto anda a velejar pelo Mediterrâneo, é fácil encontrar mais paralelos com o caso do Irão Imaginário.
Posso estar enganado, o que não é invulgar, mas o sucesso do acordo de paz agora proposto por Trump, a verificar-se (o que olhando para o passado da região tem sempre uma forte possibilidade de não acontecer), não será bem visto por essa esquerda que agora interrompe comboios e grafita monumentos. Para começar porque a paz, a paz possível, seria sempre e inequivocamente um sucesso político de Trump, personagem que representa tudo o que eles abominam. Por todos os motivos e mais esse, digo eu, seria uma coisa bonita de se ver. Longe de simpatizar com o actual Presidente dos EUA, juntar-me-ia, e sem vacilar, aos que aplaudiriam tal êxito alcançado. Uma paz viável deixaria a essa esquerda aziada também por assim perderem outra das suas bandeiras. O wokismo já mostrou mais saúde e agora uma paz alcançada por Trump seria outro duro golpe. Lá teriam de se voltar a justificar com as suas permanentes boas intenções e lá teriam de ir desencantar outros oprimidos quaisquer para, quais rémoras, se colarem a eles.
Muito provavelmente estarei a pronunciar-me demasiado cedo, mas, a confirmar-se, será caso para dizer que quando os "bem intencionados", mesmo sem o admitirem, se arrepiam com uma possibilidade de paz, é nesse momento que o diabo morde a própria cauda e o círculo se fecha sobre si próprio. Aguardemos.

