As nossas perigosas verdades
O DN descobriu outra fake news: afinal, a foto de uma sem-abrigo com criança, que andava a circular nas redes sociais, não foi tirada em Lisboa, mas em Bordéus. A boa consciência ocidental respira mais descansada e lembrei-me de um episódio do final da Primeira Guerra Mundial, quando os países da Entente faziam correr boatos alarmantes nos territórios do Império austro-húngaro, as agora chamadas fake news, que na altura se denominavam boatos. Isso motivou um artigo de Karl Kraus: «as mentiras da Entente em geral nem de longe são tão perigosas como as nossas verdades», escreveu o jornalista vienense. Também considero grave que uma foto de uma sem-abrigo com criança em rua de Bordéus passe por ser uma cena em Lisboa, infelizmente as revelações do DN nada me dizem sobre os sem-abrigo de Portugal. Não encontrei este caso antes de o ler hoje, mas teria desconfiado da qualidade da manta que aquece as duas vítimas. Kraus teve razão antes de tempo, pois os boatos contemporâneos só circulam quando as pessoas deixam de acreditar nas autoridades e na sua imprensa, os rumores só atingem instituições e políticas descredibilizadas. De facto, a nossa verdade é pior que a nossa mentira, por isso teremos mais destes rumores, veremos outros sem-abrigo de Bordéus a fazerem-se passar por sem-abrigo de Lisboa. E lá estará o DN a fazer justiça.