As mulheres que li e vi (1)
O Dia Internacional da Mulher serviu de pretexto para, durante o passado dia 8, em alguns grupos mais geek do Twitter se partilharem personagens femininas preferidas de filmes, séries, bandas desenhadas e videojogos. Por imagens, claro - o Twitter convida a muita coisa, mas a prosa não é uma delas. Felizmente, os blogues ainda cá estão, e são tão amigos da imagem como da palavra, pelo que pensei valer a pena pegar nesta ideia e desenvolvê-la um pouco para além dos 140 caracteres. O objectivo era ter escrito no Domingo um único texto que passasse por todos estes formatos, e ainda referisse alguns livros, mas o projecto logo se tornou demasiado longo para um artigo num blogue ("the tale grew in the telling", passe o anglicismo). Assim, um artigo dará lugar a vários, ao longo dos próximos dias, sobre autoras e personagens que me marcaram ao longo dos anos. E começamos hoje pelos livros.
Já aqui falei do livro que me serviu de introdução à ficção científica literária - The Snow Queen, de Joan D. Vinge (não costumo desperdiçar oportunidades para escrever sobre este livro). À data da sua publicação em 1980, esta space opera inspirada no conto tradicional de Hans Christian Andersen foi descrita como um Star Wars feminista, e se é certo que reconheço à descrição algum mérito, nem por isso deixo de a considerar demasiado redutora: a narrativa de Vinge passa-se de facto numa galáxia distante, mas é infinitamente mais complexa e ambígua do que qualquer filme saído dos conceitos iniciais de George Lucas. Certo é que a inocente (mas determinada) Moon e a cruel (mas visionária) rainha Arienrhod ficaram sempre comigo; volta e meia lá regresso àquelas páginas, sem nunca deixar de me maravilhar.
The Snow Queen abriu-me as portas de todo um género que, sendo predominamente masculino, foi tendo as suas grande autoras. Ursula K. Le Guin será o nome incontornável, claro - quem nunca leu The Left Hand of Darkness (1969) está a perder um dos grandes livros do século XX, tanto pela desconstrução e pela problematização das identidades de género como pela profunda humanidade das suas personagens. E a trilogia Earthsea (The Wizard of Earthsea, The Tombs of Atuan e The Farthest Shore, de 1968, 1971 e 1972 respectivamente) figura com justiça entre as obras maiores da fantasia literária, tanto pela riqueza do mundo secundário que criou como pela capacidade de dizer tanto, e tão bem, em tão pouco espaço. Ao reler, há algumas semanas, The Wizard of Earthsea (na lindíssima colectânea ilustrada por Charles Vess), dei por mim a pensar que, para qualquer autor contemporâneo de fantasia, a trama que Le Guin desenvolve com elegância nos cinco primeiros capítulos, em poucas dezenas de páginas, seria suficiente para pelo menos um calhamaço de seiscentas páginas e longas descrições inúteis. Saber escrever também é isto.
Ursula K. Le Guin, fotografia de Benjamin Brink/The Oregonian via AP; fonte.
Outro grande nome feminino da ficção científica é o de Alice Sheldon, ou James Tiptree Jr. - o pseudónimo masculino deu azo a muita especulação e a alguns episódios caricatos nos anos 70. Contista notável, Sheldon/Tiptree encantou-me com a sua prosa clara e com a ambiguidade, a sofisticação e a imaginação dos seus contos. Textos como The Girl Who Was Plugged In (1973), The Women Men Don't See (1973), Love is the Plan the Plan is Death (1973), Houston, Houston, Do You Read? (1976), ou The Screwfly Solution (1977) serão leitura obrigatória tanto para apreciadores de contos em geral como para fãs de ficção científica em particular. As polémicas recentes envolvendo o prémio literário atribuído em seu nome e as circunstâncias da sua morte em 1987 em nada diminuem o seu enorme legado (e já agora, para quem quiser saber um pouco mais sobre Alice Sheldon/James Tiptree Jr., aqui deixo um artigo muito interessante que descobri enquanto fazia algumas pesquisas).
Alice Sheldon/James Tiptree Jr.; fotografia de autor desconhecido. Fonte.
Das minhas leituras dos últimos anos destacaria ainda três autoras notáveis. A primeira, Ann Leckie, cujo romance de estreia, Ancillary Justice (2013) deu um contributo notável para a revitalização da space opera literária partindo de um ponto de vista marcadamente feminista (também já cá falei dele). A segunda, Emily St. John Mandel, que não sendo uma autora de ficção científica explorou alguns temas clássicos do género no notável Station Eleven (2014), um romance pós-apocalíptico cuja narrativa explora as vidas de algumas personagens antes e depois de uma pandemia de gripe ter destruído a civilização tal como a conhecemos (uma leitura curiosa para estes dias). E, por fim, Nnedi Okorafor, norte-americana de origem nigeriana que tem pegado em décadas de convenções narrativas para lhes dar um novo fôlego de inspiração africana. Nas minhas leituras encontrei poucas alienígenas tão intrigantes com a Ayodele de Lagoon (2014), e a odisseia da jovem Onyesonwu em Who Fears Death (2010) é absolutamente espantosa.
Os próximos textos incidirão mais sobre personagens do que sobre autoras, pelo que talvez valha a pena concluir esta breve viagem literária com uma personagem: Esmerelda (Esme) "Granny" Weatherwax, protagonista de um dos arcos narrativos da longa série de fantasia satírica Discworld, de Terry Pratchett. Líder informal (e incontestada) do círculo de bruxas da região montanhosa conhecida como Ramtops, Esme é conhecida pela sua absoluta confiança nas suas capacidades e pelos seus princípios inamovíveis; quem a procura, obtém não aquilo que procura, mas aquilo de que precisa. Não é muito frequente encontrar protagonistas com a vetusta idade de Granny na fantasia literária, pelo que ler as suas aventuras acaba sempre por se revelar refrescante (e divertido - estamos em Discworld, afinal). A galeria de personagens que Pratchett criou para Discworld é notável, mas, pese embora a competição renhida, é bem possível que Granny Weatherwax tenha sido a sua maior criação.
Granny Weatherwax, esboços de Paul Kidby. Site oficial.