As malvadas redes sociais

Vivemos sob um superavit de informação, um “potlatch” (um ritual esbanjo histriónico) de imagens que nos veda a compreensão, muitos nos afiançam. Este não é um argumento novo. Por exemplo, no já vetusto 1999, João de Almeida Santos encetou o seu interessante “Breviário Político-Filosófico” com um “De tanto ver e ouvir, corremos o risco da cegueira e da surdez”. E esta alienação, de que parecemos ser passivos objectos, acresce-se nas malfadadas “redes sociais”, indignificadoras de argumentos e seus locutores. Isso nos asseguram vultos proeminentes - que normalmente se julgam algo “gauchistes” -, como o publicista José Pacheco Pereira e o jornalista Miguel Sousa Tavares - que as quer proibir, sem que alguém apode de fascista quem é pago para dizer tais coisas.
Anteontem telefonou-me um jornalista, a propósito de dois textos (maldispostos) que escrevi há um ano (num desprezível blog...). E disse-me que o responsável da instituição alvo do meu resmungo lhe respondera “não comento declarações em redes sociais”. Terá toda a razão o referido responsável (aliás, em termos gerais a sua resposta fora muito curial). Eu retorqui ao jornalista: “pois, mas depois de ter escrito o texto desafiaram-me a escrever para um jornal” - e se o tivesse feito já seria agora “comentável”. “Sabe porque não o fiz?”, aduzi.... “porque não me pagariam para isso”. Vi-lhe o sorriso, do lado de lá do telefone. “Para que é que vou escrever para um jornal, se não me pagam?”, coisa pouca que fosse, o gasto mensal da água, por exemplo... Posso-o fazer por algo que alcandore a “causa” minha - a atenção sobre a situação moçambicana, e já o fiz. Ou a abjecta malvadez das candidaturas PS à junta de freguesia dos Olivais, e não o fiz. Mas as meras opiniões? A meter-me em cuidados de as enformar, com detalhes e rodapés, para publicar gratuitamente em jornais? Para quê? Para o prestígio (aos 60 anos)? Por narcisismo (para este basta-me o blog)? Para almejar ser comentado por um funcionário público?
Mas este desprezo pela palavra pública não é apenas corporativo. Pois este mescla-se com o ideológico. Há dias ouvi a prelecção de um fotógrafo espanhol - que ali apresentava boas fotografias de guerra na Síria, justiça lhe seja feita. Invectivou as redes sociais, alienantes, claro. Os milhões de imagens que afogam a nossa Razão e a nossa Sensibilidade. Tudo para sublinhar que a “nossa” sociedade (depreendi que acima de tudo a europeia, pois democrática liberal - pois este é discurso típico da extrema-esquerda -, mas isso ele não especificou, deixando no ar que se tratava de um diagnóstico universalizante) está doente como nunca e nisso desatenta aos conflitos - e mais do que depreendi que se referia à situação de Gaza. E muito decerto que devido às invectivadas “redes sociais”.
No final da veemente arenga seguiu-se o habitual período de “perguntas”. Com (espero) notória simpatia não lhe referi que sendo ele da minha idade, pois isso aparentava, ambos tínhamos chegado a adultos quando a América Central e do Sul vivia sob tais ditaduras que até Pinochet seria algo “manso” diante dos Stroessner, Videla, Somoza e quejandos. Que em África havia guerras violentíssimas e ditaduras execráveis (os Live Aid acorriam a fomes que tinha tantas causas políticas como ecológicas, pelo menos, o apartheid jugulava a África do Sul - e a Namíbia). Que na Ásia o pós-maoísmo era pouco “pós”, Pol Pot ainda guerrilhava e muito, a Indonésia era Indonésia, e por aí afora. E que metade da Europa era brejnevista ou pior. Nada disso lhe disse porque tal lhe prejudicaria o argumento escatológico - isto de vivermos um quase fim do mundo devido ao atrevimento das gentes comunicarem entre si. (E ao capitalismo, claro).
Disse-lhe apenas que escrevo em redes sociais. E que há conflitos e situações sobre as quais aqui no país nenhum “encartado” fala. Ou falam pouco. Referi a guerrilha no Cabo Delgado em Moçambique - sobre a qual em Portugal houve enorme silêncio, que agora de novo vigora. E do qual recebi e recebo ainda inúmeras notícias e desgraçadas fotografias e filmes - emanadas do “jornalismo digital” (amador) e da “cidadania digital”, esses que ele e seus apaniguados tanto denigrem. Como não falam do Sudão - e apontei o exemplo do excelente recente artigo de Anne Applebaum, que ela publicou em “The Atlantic” mas também no seu blog (hélas!) na Substack. E que mesmo tendo ela vindo agora ao festival literário de Óbidos ninguém pegou no assunto. E aludi à situação em Madagáscar, aqui silenciada.
O “nosso irmão” nem me respondeu. Atentou noutras breves perguntas e apenas en passant (qual as velhas carnavalescas bisnagas vira-bicos) deixou cair um arreigado “apenas um jornalista tem a capacidade para escrever um texto analítico e sintético sobre uma situação”. Eu, antropólogo, sorri num “para mais tarde recordar”. Ainda para mais porque o homem estava ladeado por um fotógrafo do “Público” - esse jornal “de referência” no qual durante décadas li patéticos dislates sobre Moçambique, desde o tráfico de orgãos levados de Nacala para Maputo por caminho-de-ferro, passando pelo generalizado “pânico em Maputo” devido a raptos, até Venâncio Mondlane filho de Eduardo Chivambo Mondlane, e por um enorme aí afora de disparates encartados e ... convictos.
Vem tudo isto a propósito de uma memória. Há uns anos fui à Feira do Livro de Bruxelas. Numa banca havia uma sessão de autógrafos de vários autores, que eu desconhecia. Folheei livros. Deparei-me com uma delícia, verdadeira peróla para meu gosto, e comentei (em português) para o meu lado do meu agrado. À minha frente estava um autor que, sorridente ao perceber todo aquele meu encanto expresso em língua que lhe era estranha, me disse “o autor é aquele”. Lá fui, pedir o autógrafo... Tratava-se do “Back to Al Bak”, um regresso à cidade natal do malgaxe Dwa, um talentoso aguarelista que faz banda desenhada. Belíssima.
Desde então que o sigo nas “redes sociais”. À recente convulsão em Madagáscar acompanhei-a aqui, na sua página do Facebook, através das suas magníficas ilustrações. Não nos “periódicos”, mudos sobre aquela gigantesca ilha. Mas em Dwa…
Há muita tralha na internet? Há - acima de tudo quem adoece não deve ir ao Doutor Google. Mas deixemo-nos de exageros, a “cidadania digital” é agora fundamental.
E, mais do que tudo, se puderem comprem os livros de Dwa. São uma delícia.
(Também colocado no meu blog "O Pimentel")

