As excursões
Tudo isto se passou num mundo muito diferente do nosso. Os alimentos disponíveis andavam sempre a reboque dos ciclos das sementeiras e das colheitas. Havia quem comprasse uma bezerra para a criar em casa, aproveitava-a para lavrar as terras, com a ideia de a vender, já criada, por alturas da Primavera seguinte. Tempos livres ninguém os tinha, nem pontes, nem fins de semana prolongados. Ajudava-se na vindima dos vizinhos porque era uma maneira de nesses dias ter as refeições asseguradas. O dono da vinha tinha a responsabilidade de garantir a bucha a quem aparecesse e para cada um dos mais próximos, amigos e afilhados, havia sempre uma tira de toucinho curtido na salgadeira, que era servida meio às escondidas.
Sem se entender bem como, havia ainda quem conseguisse quatro ou cinco dias para a excursão que o Senhor Zé, o Zé dos Casais, o meu avô paterno, organizava. Segundo o que sempre ouvi não havia quem conhecesse o país como ele. Não sei que conhecimentos teria quando começou as começou a organizar. Lembro-me do meu pai e os meus tios garantirem que ele, de memória, conseguia desenhar o mapa de Portugal. Provavelmente a informação inicial que tinha resultava do estudo demorado de algum mapa que tivesse. Os serões eram longos, os conteúdos disponíveis limitados e, com o passar do tempo, um dia terá fechado na sua memória o puzzle em que todas as palavras que correspondiam a vilas e cidades, estradas, serras, rios e linhas do comboio que as ligavam, se fecharam num conjunto único e definido. Com o desenho do mapa do país memorizado, acabava por ser sempre ele a indicar ao motorista, ao chófer como se dizia, por onde deveria seguir em cada cruzamento. Os autocarros eram alugados para essas ocasiões e até os chóferes gostavam de ir nas excursões organizadas pelo Senhor Zé. Com ele sentado ao seu lado, na primeira linha dos bancos, nunca tinham dúvidas por onde deveriam seguir. Para os motoristas das excursões dos anos 50 e 60, ir com o meu avô ao seu lado terá sido a experiência mais próxima de ter um GPS, embora sem uma voz maviosa e écran colorido.
O evento era especial ao ponto de, pelo menos uma vez, terem preparado uma folha que distribuíam por onde passavam e paravam.
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Pelo que nos chegou até aos dias de hoje, esta excursão de 1954 terá sido a quarta e sabemos que outras mais se seguiram. Segundo o que nos diz o prospecto, o Grupo Excursionista Juncalense usava-o para saudar os habitantes das terras ponde passavam. Os versos, arrisco, eram do Senhor José Virgílio, patriarca de uma enorme família, tratados enquanto entidade colectiva como os Vergis, que sempre foi o mais prendado poeta de rimas do concelho e arredores. A partir do prospecto e dos seus versos conseguimos fazer uma viagem no tempo pelos estabelecimentos comerciais, seus donos e ofícios. Lagares de azeite, cerâmicas de telha e tijolo, padarias, moagens, mercearias, serrações, oficina de malas e barbearia, vinhos, bicicletas e aguardentes.
A camionetes eram alugadas a firmas de Leiria com os Claras e a União Automóvel Leiriense, que depois de 1974 foram nacionalizadas para constituir a Rodoviária Nacional.
Longe de saberem o que seria o regime de meia-pensão ou de pensão completa, cada qual levava farnel para si e para os seus. Os almoços e jantares eram momentos altos onde cada um comia do que tinha levado e em que os afilhados se aproximavam dos padrinhos e madrinhas, sempre de olhos na tira de toucinho. Os garrafões de vinho faziam igualmente parte da intendência, sendo que, não fosse o diabo tecê-las, não viajavam no tejadilho. As curvas do Marão tinham má fama para os enjoos, mas não havia vomitório que estragasse o ambiente de festa da comitiva.
Os mais habilidosos serravam e furavam até conseguir segurar no ar um pano a fazer de tenda. Lembro-me de ver o meu avô a usar um furador de manivela, o berbequim da época, numa vara de madeira para esse mesmo efeito. Os outros dormiam onde calhava, sendo que, para esses, os lugares mais disputados eram os que ficavam debaixo do autocarro. Eram dias inteiros de animação, em que nem de noite deixava de haver motivo de risada e de arremedo. Fulano ressonava mais alto que o motor da camioneta e sicrano era o campeão da flatulência e até enquanto dormia conseguia animar todo o grupo excursionista.
Lembro-me de uma das minhas muitas tias-avós, o meu avô tinha sete irmãos rapazes, me contar já muito velha que tinha passado uma vida inteira de arrastação, sempre a tomar conta da casa, dos filhos, do marido e das terras, e que o único que gozo que tinha tido na vida eram as excursões que o meu avô organizava.
O calendário desses tempos era marcado pelo Natal, Páscoa, matança do porco, vindima e as excursões do Zé dos Casais. Tudo o resto tinha sido antes ou depois destes acontecimentos.
Mais de uma década volvida, um rapazola armado ao pingarelho, que era da terra mas tinha passado uns anos pela capital, achou que conseguia também ele organizar excursões como as do Zé dos Casais. Teria visto outras coisas e talvez prometesse paragens mais longas, ou mais curtas, mais ou menos castelos, mais ou menos curvas. Não faço ideia qual seria o seu factor competitivo ou como é que conseguia vender as suas excursões ao público, que só as conhecia pela mão do meu avô. Aquele atrevimento foi coisa que gerou grande indignação na minha família. O fulano vivia um pouco mais abaixo na mesma rua, o que fazia que às vezes se cruzassem num silêncio incómodo. Deve pensar que é mais esperto que os outros! Um rapazola mal desmamado à frente de um autocarro! Como as leis de condicionamento industrial do Estado Novo eram omissas no que toca a excursões, não havia nada a fazer para impedir aquela concorrência. Os mais abonados, que não eram muitos, conseguiam aproveitar as ocasiões que cada um deles criava e não perdiam nenhuma das oportunidades para passear, os demais tinham de escolher a que excursão iam e isso foi tema de demorados debates pelas tascas, adegas e lares do Juncal.
Impedido de travar a concorrência, ao meu avô restou apenas o alívio de inventar uma alcunha para o seu concorrente. Desde esse dia, o Jaquim Rei passou a ser referido lá em casa como o Trombalachana. Não resolvia a apoquentação, mas aliviava o fel.
E veio tudo isto à escrita, porque na semana passada o Trombalachana, que já tinha passado dos noventa há uns bons anos, foi a sepultar. Paz à sua alma.
E é assim, pouco a pouco, que o mundo de antigamente se vai desligando de nós.

