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Delito de Opinião

As coisas mudam

Pedro Correia, 30.10.19

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Revi-me há dias nesta imagem de arquivo no Jornal da Noite da SIC. Estava sentado na bancada de imprensa da Assembleia da República com os meus colegas Nuno Simas e Paula Sá - os três em representação do Diário de Notícias. No primeiro dia da legislatura 1999/2002, há 20 anos exactos.

À nossa frente, dois deputados caloiros: Francisco Louçã e Luís Fazenda. Acabavam de ser eleitos e recusaram sentar-se numa segunda ou terceira fila, como figuras adjacentes da bancada parlamentar comunista. O PCP não queria dar palco político e mediático àquele jovem partido que prometia crescer à custa de fatias cada vez mais dilatadas do seu eleitorado.

Louçã e Fazenda teimaram em permanecer de pé, recusando os postos secundários que lhes haviam sido destinados por consenso dos imobilistas que dominavam no Parlamento - mesmo os da autoproclamada esquerda, tão avessos como os outros à mudança. E fizeram muito bem. Viriam a ter os lugares que reivindicavam: um na primeira fila, o outro atrás dele. Em lugar nobre do hemiciclo e perto dos focos mediáticos. Não podiam, aliás, estar mais perto: a bancada da imprensa é logo ali.

 

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Revejo com certa nostalgia esta foto do meu tempo de repórter parlamentar, onde surge Lino de Carvalho, qualificado deputado comunista, tão prematuramente desaparecido. Parece que foi anteontem e já nos transporta ao século passado. Estreantes no hemiciclo, Louçã e Fazenda vestiam a rigor, ambos com fatinho de deputado: a única nota de rebeldia, que na altura gerou imenso clamor, foi a ausência da gravata - prenunciando o que o Syriza, na Grécia, fez 16 anos mais tarde e o deputado da Iniciativa Liberal faz hoje em São Bento, duas décadas volvidas.

Basta esta imagem fixada no tempo para se perceber como os padrões de vestuário mudaram entre as vetustas paredes do Palácio de São Bento. Falta pouco para vermos deputados de chinelos. Alguns equipam-se mais a rigor quando vão para a esplanada do que quando chegam ao Parlamento. Embora exijam - estou certo disso - code dress num posto clínico, numa esquadra, num tribunal ou até num daqueles restaurantes caros e péssimos que costumam frequentar.

O modo como nos vestimos diz muito do nosso respeito pela casa que visitamos - respeito suplementar tratando-se de uma instituição angular da democracia portuguesa. No caso dos jornalistas, acresce que - como um dia disse a um colega mais jovem, quando o vi em São Bento de sandálias e calções - não estamos ali em representação própria, mas do órgão de informação em que trabalhamos. Razão acrescida para salvaguardar a imagem desse título jornalístico: naquele momento, naquele local, ele é personificado em nós.

Fala-se muito na degradação dos trabalhos parlamentares, evidenciada pela fraca qualidade média dos deputados. Essa degradação começa nos padrões de vestuário. Anda tudo ligado, como dizia o outro.

 

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Esta imagem reconduz-me também a um episódio da vida jornalística que demonstra como a inércia é uma força muito poderosa nas redacções dos jornais. Quem assumia então responsabilidades na secção política do DN entendeu distribuir equipas de trabalho para cobrir a campanha eleitoral de 1999 em obediência ao cânone tradicional: PS, PSD, CDS e PCP.

Quando perguntei, numa reunião, quem iria acompanhar o BE, obtive uma resposta burocrática: «É irrelevante. Seguimos pela Lusa.» Contestei, argumentando que o recém-surgido Bloco iria ser a novidade daquelas legislativas. E lá voltou o contraponto burocrático: «Nem pensar. É um epifenómeno, mero folclore eleitoral.»

Insisti. Como o Parlamento estava fechado, ofereci-me como voluntário para cobrir as acções de campanha do BE. E lá andei na rua, acompanhando a ainda incipiente caravana bloquista, cada vez mais convicto de que a razão estava do meu lado. Como se viu. O novo partido não se limitou a eleger um solitário representante, como noutros tempos sucedeu com a UDP ou o efémero Partido da Solidariedade Nacional de que já ninguém se lembra, mas dois deputados - requisito mínimo para constituir grupo parlamentar. E aquela legislatura revelou-se crucial para o seu crescimento.

Foi, aliás, uma legislatura histórica desde o primeiro dia - a que decorreu sob o signo 115-115, quando o número de deputados apoiantes do Governo se equivalia ao dos representantes da oposição todos somados, o que acabou por ditar o seu fim prematuro.

 

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Lembro este episódio e concluo que nestes últimos 20 anos, nas redacções jornalísticas, só se mudou para pior. Desde logo pela flagrante falta de meios em comparação com os que existiam em 1999.

Voltaram a imperar as rotinas burocráticas, voltou a evidenciar-se a falta de rasgo na cobertura de campanhas eleitorais, voltou a apostar-se só no que já se conhecia. Quase nenhum meio informativo acompanhou em pormenor as acções de campanha das três forças políticas emergentes das legislativas de 6 de Outubro: Chega, Iniciativa Liberal e Livre. Imagino que alguns repórteres terão ouvido, nas respectivas redacções, os mesmos argumentos que eu ouvi há duas décadas das chefias de turno: são epifenómenos, não chegarão a lugar algum.

E no entanto as coisas mudam. Basta por vezes vermos uma foto antiga para percebermos isto.

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