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Delito de Opinião

As canções no cinema (4)

Pedro Correia, 29.07.15

 

CUCURRUCUCÚ PALOMA (Fala com Ela, 2002)

 

Dicen que por las noches
No mas se le iba en puro llorar,
Dicen que no dormía
No mas se le iba en puro tomar;
Juran que el mismo cielo
Se estremecía al oír su llanto,
Cómo sufrió por ella
Que hasta en su muerte la fue llamando:

 

Cucurrucucú, cantaba,
Ay, ay, ay, ay, gemía,
Ay, ay, ay, ay, lloraba,
De pasión mortal moría.

 

Certos filmes propiciam-nos momentos mágicos que para sempre guardamos na memória. Aconteceu-me em 2002, ao ver em estreia aquela que ainda hoje é para mim a melhor obra de Pedro Almodóvar: Fala com Ela. Subitamente, a grande tela torna-se ainda maior quando ali irrompe Caetano Veloso, de forma imprevisível, entoando um tema clássico da música hispânica do século XX naquele seu jeito que tantos procuram imitar sem conseguir.

Caetano canta numa récita ao ar livre perante algumas dezenas de convidados que se deslumbram ao escutá-lo. E nós, espectadores, partilhamos com eles um deslumbramento que não cessa. Ele surge durante alguns minutos, interpretando-se a si próprio, e não reaparece em Fala com Ela. Canta Cucurrucucú Paloma, fenomenal êxito mexicano da década de 50, escrito para Lola Beltrán, que o popularizou no filme homónimo de 1965 e divulgado desde então por celebridades dos palcos melómanos e também por incontáveis trios de anónimos mariachis, tornando-se um dos temas musicais mais associados ao país de origem.

Lola manteve-se fiel à toada de raiz folclórica. Mas Caetano estilizou a canção na película de Almodóvar, apropriando-se dessa vibrante ranchera e dando-lhe um cunho pessoalíssimo. Cucurrucucú Paloma migrou do México para o Brasil, abraçou o violão e a batida da bossa nova, foi amparada pelo carinho vocal do criador de Menino do Rio, tornou-se canção emblemática de um mundo sem fronteiras, tornou-se tema do filme da vida de cada um de nós.

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Fala com Ela é uma belíssima longa-metragem sobre os ténues laços que ligam os seres humanos num mundo povoado de silêncio e solidão. Mas não é um filme desencantado: há nele uma luz de esperança que nunca se apaga, protagonizada por Benigno (Javier Cámara), o enfermeiro que não cessa de comunicar com a bailarina Alicia (Leonor Watling), em coma no hospital. Ao contrário do que sucede com Marco (Darío Grandinetti), jornalista e escritor, incapaz de enfrentar o coma de Lydia (Rosario Flores), a toureira que o arrebatava antes de ser colhida numa praça a las cinco en punto de la tarde.

“Fala com ela”, recomendava-lhe Benigno – nome que certamente não foi escolhido por acaso. Dando uma lição de vida ao profissional da comunicação, afinal incapaz de comunicar.

 

Tomás Méndez (1926-1995), o compositor desta canção que deu a volta ao globo também nas vozes de Joan Baez, Perry Como, Harry Belafonte, Nana Mouskouri, Pedro Infante, Julio Iglesias, Lila Down e Luis Miguel, foi um compositor reconhecido em vida e muito aplaudido no México. Mas talvez nunca imaginasse que a sua Paloma fosse capaz de voar tão alto como nesta obra-prima do espanhol Almodóvar, rodada sete anos após a sua morte.

Fala com Ela mereceu todos os prémios conquistados: Óscar em Hollywood para melhor argumento original (também de Almodóvar), Globo de Ouro e BAFTA (Óscar inglês) para melhor filme estrangeiro, César (francês) para melhor filme da União Europeia, troféu da Associação de Críticos de Los Angeles. E teria merecido ainda mais: logo na estreia ganhou o estatuto de clássico.

O fascínio incessante deste que é um dos mais universais títulos de sempre do cinema espanhol nunca será dissociado daqueles três minutos de pura magia proporcionados pela inesperada aparição de um genuíno cidadão do mundo: Caetano Veloso, baiano de Santo Amaro da Purificação cantando em castelhano um tema composto no México.

“Dicen que por las noches / No mas se le iba en puro llorar, / Dicen que no comía / No mas se le iba en puro tomar; / Juran que el mismo cielo / Se estremecia al oír su llanto / Como sufrió por ella, / Que hasta a en su murte la fue llamando: / Cucurrucucú, cantaba, / Cucurrucucú, lloraba.”

 

Tantos anos depois, imagino Caetano em rotações contínuas num som incessante mas sempre renovado - como se o tivesse escutado há minutos pela primeira vez. Imune à erosão do tempo, perpétuo na imensidão do espaço.

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