As canções da minha vida (4)
COIMBRA
1947
Lá em casa, desde os tempos da minha mais remota infância, sempre houve canções. Recordo-me de a minha mãe cantar vezes sem conta – e com ela aprendi largas dezenas, talvez centenas, de cantigas. Também o meu pai cantarolava, com menos jeito e um repertório menos vasto – mas foi quanto bastou para dele herdar umas tantas. E ambas as avós me transmitiram igualmente este gene e este gosto de cantar a qualquer momento: são raras as ocasiões em que uma música não me acompanha. Sem necessitar de auriculares.
Foi numa temporada em casa da minha avó materna, teria eu uns cinco anos, que a ouvi cantar Coimbra pela primeira vez. Lembro-me como se fosse hoje: passava ela roupa a ferro enquanto lhe saíam aqueles versos que logo me atraíram a atenção: «Coimbra é uma lição / de sonho e tradição / o livro é uma canção / e a lua, a faculdade.» Não tardei a repeti-la, incapaz no entanto de me aperceber ainda das subtilezas da letra – de tal maneira que durante algum tempo cantarolava “Olívia é uma mulher”. Fazia algum sentido, para o rapazinho que eu era, que a mulher fosse um livro?
Hoje admito que houvesse tanto de nostalgia como de júbilo na cantoria da avó Maria, desenraizada da sua Coimbra natal, onde raras vezes regressou após o casamento. Uma cidade que também passei a considerar minha já em adulto: a voz do sangue nunca nos abandona.
Muitos ignoram que Coimbra nasceu no cinema. Corria o ano de 1947, ia estrear-se a longa-metragem Capas Negras, com Amália Rodrigues e Alberto Ribeiro a encabeçar o elenco - cantores-actores de quem o público exigia ouvir trinados. O realizador Armando de Miranda - que sete anos antes divulgara a canção O Meu Alentejo no filme Pão Nosso - encomendou uma cantiga emblemática a um dos maiores duos de autores da música popular portuguesa: o compositor Raul Ferrão (1890-1953) e o letrista José Galhardo (1905-1967), que só tiveram de tirar da gaveta uma composição guardada desde 1939.
Assim nasceu esta belíssima Coimbra, interpretada pela primeira vez por Alberto Ribeiro (um dos estudantes no filme, juntamente com Artur Agostinho e Igrejas Caeiro) mas cedo popularizada por Luís Piçarra e pela própria Amália, que a cantou durante anos nos seus espectáculos e a incluiu no seu primeiro LP editado em Portugal, Amália no Olympia (1957).
Capas Negras foi um dos maiores êxitos de bilheteira do cinema português: permaneceu 22 semanas em cartaz, atraindo cerca de 200 mil espectadores ao Condes, sala lisboeta onde se estreou.
O tema de Ferrão e Galhardo não tardou a correr mundo, tanto em versões instrumentais como vocais, sob o título genérico Abril em Portugal adaptado ao respectivo idioma, tornando-se no mais perdurável cartaz turístico do nosso país em forma de música. Logo em 1947 o compositor e letrista irlandês Jimmy Kennedy (1902-1984) elaborou os versos ingleses do tema, que viria a ser celebrizado nas vozes de Louis Armstrong, Bing Crosby, Vic Damone e Tony Martin. Em 1953 ascenderia ao segundo lugar do top da Billboard, na versão instrumental da orquestra de Les Baxter. Outras se seguiram, incluindo as de Xavier Cugat e Ray Conniff.
Em francês foi popularizada a partir de 1950 por Yvette Giraud e Eartha Kitt, com versos de Jacques Larue (1906-1961).
Roberto Carlos, Julio Iglesias e Caetano Veloso - entre tantos outros - também lhe deram voz.
Mas ainda hoje estou convencido de que nunca ninguém a cantou tão bem como a minha avó.
«Coimbra do choupal / Ainda és capital / Do amor em Portugal, ainda. / Coimbra onde uma vez / Com lágrimas se fez / A história dessa Inês tão linda.»