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Delito de Opinião

As canções da minha vida (19)

Pedro Correia, 10.07.20

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BARCO NEGRO

1955

 

Há canções no cinema capazes de nos tocar a tal ponto que relegam o enredo para segundo plano. Aconteceu-me algumas vezes enquanto espectador. Mas talvez nunca com tanta intensidade como num filme francês, rodado por Henri Verneuil (1920-2002) em Lisboa. Esta longa-metragem de 1955 é hoje lembrada não pelos seus méritos cinematográficos, que são escassos, mas por ter impulsionado a ascensão internacional de Amália Rodrigues. Bastaria para que eu, amaliano militante, a incluísse na minha galeria de títulos estimáveis da Sétima Arte.

Amália tem um papel relativamente importante no filme, interpretando-se a si própria. Surge aliás em quinto lugar na ficha artística, logo após Daniel Gélin (que no ano seguinte surgiria em O Homem que Sabia Demais, de Alfred Hitchcock), Françoise Arnoul, Trevor Howard (célebre pela sua aparição em O Terceiro Homem, obra-prima do cinema britânico) e Marcel Dalio (do elenco de Casablanca). E a sua presença vocal manifesta-se desde o instante inicial: enquanto decorre o genérico, sobre panorâmicas de Lisboa, é a voz dela que escutamos. Cantando Foi Deus, um dos mais belos temas do seu riquíssimo reportório.

Os Amantes do Tejo – baseado na obra homónima do escritor Joseph Kessel, publicada um ano antes – conta-nos a história de Pierre, ex-membro da resistência francesa refugiado em Lisboa, onde trabalha como taxista, após ter cumprido pena de prisão no país natal por ter assassinado o amante da mulher in flagrante delicto. Um dia transporta Kathleen, turista por quem se apaixona, não resistindo a confessar-lhe o seu segredo. Mas também ela é perseguida por uma sombra do passado. O romance está condenado a terminar mal.

 

O que importa aqui, no entanto, é a presença magnética de Amália. O filme subsiste como objecto de culto por causa dela, só por causa dela. E nunca foi tão etérea e tão carnal em simultâneo como nos minutos em que canta – com a voz da alma – o arrepiante Barco Negro, original brasileiro a que David Mourão-Ferreira (1927-1996) emprestou o seu talento poético.

«De manhã, temendo que me achasses feia, / Acordei tremendo deitada na areia. / Mas logo os teus olhos disseram que não / E o sol penetrou no meu coração. / Vi depois, numa rocha, uma cruz / E o teu barco negro dançava na luz. / Vi teu braço acenando entre as velas já soltas. / Dizem as velhas na praia que não voltas: / São loucas! / São loucas!»

Amália actua numa casa de fados, acompanhada por Jaime Santos, Domingos Camarinha e Santos Moreira, seus guitarristas à época. Às tantas, um miúdo pergunta a Kathleen se está a gostar. «Muito. Só tenho pena de não saber português», responde ela. «É sobre a mulher de um pescador que morreu no mar. Todas as noites ela desce à praia e fala-lhe como se ele não tivesse morrido», esclarece o garoto. Pierre/Gélin traduz depois para francês o poema de Mourão-Ferreira. Como se tivesse sido escrito para Kathleen: «Tu es toujours là, toujours là, toujours là…»

 

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Barco Negro nasceu de um acto de censura. No original brasileiro, de 1943, intitulava-se Mãe Preta e culminava desta forma: «Enquanto a chibata batia no seu amor / Mãe preta embalava o filho branco do senhor.»

Proibida pelo regime salazarista, a canção composta por Caco Velho (Matheus Nunes, 1920-1971) e Piratini (Antônio Amábile, 1906-1953) era uma denúncia óbvia do racismo que na adaptação fadista derivou para a tragédia de um pescador engolido pelo mar.

Amália trabalhara antes no cinema – enquanto protagonista de Capas Negras (Armando de Miranda, 1947), Fado (Perdigão Queiroga, 1948) e Vendaval Maravilhoso (Leitão de Barros, 1949). E já tinha prestígio internacional. Na década de 40 mantivera-se quatro meses no cartaz do luxuoso Copacabana Palace, onde estreou Ai Mouraria. Em 1953 actuara ao longo de 14 semanas no nightclub La Vie en Rose, em Nova Iorque, e no ano seguinte foi atracção no Mocambo, em Hollywood. Privara com Danny Kaye e Eddie Fisher, cantara com Lena Horne e Nat King Cole. Mas para ela as portas de França só se abriram com a enorme repercussão deste filme, onde também interpreta – sob o título Solidão – a célebre Canção do Mar, com música de Ferrer Trindade, aqui igualmente com versos de Mourão-Ferreira.

Os franceses renderam-se à rainha do fado. Nesse mesmo ano, a editora discográfica Columbia lançou em Paris um EP que juntava Barco NegroSolidão Falaste Corazón (uma ranchera mexicana) e Lisboa Não Sejas Francesa, popular tema de Raul Ferrão e José Galhardo.

Em 1956, Amália cantou pela primeira vez no Olympia de Paris: a partir daí o mundo francófono não deixaria de lhe prestar tributo.

 

Além de tudo isto, é evidente o interesse documental do filme de Verneuil pelos seus numerosos exteriores rodados em Lisboa.

Um espectador português do século XXI não deixará de acompanhar com interesse as imagens da nossa capital desse tempo em que ainda havia sinaleiros a regular o trânsito, as carroças eram frequentes, os pregões das varinas e dos ardinas ecoavam em qualquer canto da cidade, as fragatas sulcavam o rio e os eléctricos integravam o quotidiano dos Restauradores.

Paisagens que se mantiveram incólumes (o castelo, o miradouro de Santa Catarina, São Pedro de Alcântara, o cais da Rocha de Conde Óbidos) em contraste com edifícios que o camartelo alfacinha para sempre sepultou (como o luxuoso Hotel Aviz, situado onde hoje se encontra o Sheraton: ali se hospedava em permanência o multimilionário Calouste Gulbenkian).

 

Para mim tem um interesse adicional: 1955 foi o ano em que os meus pais se casaram. Gosto da longa-metragem de Verneuil também nessa perspectiva: permite-me conhecer com algum pormenor a Lisboa desse tempo, vários anos antes de eu nascer.

O meu pai, à época trabalhador-estudante, era funcionário da Direcção-Geral de Saúde, com entrada numa das arcadas do Terreiro do Paço. É o primeiro local onde avistamos Amália e Pierre/Gélin.

Nunca deixarei de ver o filme sem espreitar com redobrada atenção aquela cena. E aproveito para confessar também um segredo: ainda não perdi a esperança de um dia lá descobrir o meu pai, que sempre recordo a cantarolar o estribilho final desta canção da vida dele, agora uma das canções da minha vida.

 

«Eu sei, meu amor, / Que nem chegaste a partir / Pois tudo em meu redor / Me diz que estás sempre comigo.»

 

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