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Delito de Opinião

As canções da minha vida (15)

Pedro Correia, 10.05.20

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LE MÉTÈQUE

1969

 

Há canções que para sempre associamos a períodos irrepetíveis das nossas vidas. Le Métèque entrou-me casa adentro, em sessões contínuas, ficando a marcar o Verão dos meus 13 anos. Quando a rádio me acompanhava de manhã à noite e eu me preparava para mais uma mudança – noutro continente, noutra cidade, noutra escola, com novos colegas, num país em ebulição.

Tudo era diferente, até a música que se escutava. O romantismo estava fora de moda, a poesia dera lugar ao estribilho de comício, a política imperava, todos advogavam a revolução para ontem. Por longos meses que nos pareciam décadas, a chamada “língua do império” – a que os Beatles e os Stones conferiram passaporte mundial – fora banida das ondas hertzianas. Soava a “degradação burguesa”, fosse lá isso o que fosse.

Sou, portanto, de um tempo em que se ouvia muita música em francês devido às encruzilhadas da História. E, por via disso, dou por mim a pertencer à última geração francófila – muito em função de canções que nunca deixam de me soar na memória.

 

Reuníamo-nos em tertúlias adolescentes, onde nunca faltava alguém a dedilhar os acordes de uma viola, e lá surgia esta balada a iluminar a noite: «Avec ma gueule de métèque / De juif errant, de pâtre grec / Et mes cheveux aux quatre vents, / Avec mes yeux tout délavés / Qui me donnent l’air de rêver / Moi qui ne rêve plus souvent…»

Aqui não havia rima fácil nem cantarolice para combustão rápida em desfiles partidários: era trova de fino quilate, o encontro privilegiado de poesia e música, na voz de um norte-africano que também viera a Lisboa e prestara tributo à língua portuguesa. Como fizera ou viria a fazer em Salvador da Baía, sem jamais perder aquele semblante de forasteiro, de judeu errante, de pastor grego com cabelos apontados aos quatro ventos. Um verdadeiro cidadão do mundo.

 

Raras vezes uma canção nos desvenda tanto do seu autor em escassos dois minutos e meio. Este "métèque" de que Moustaki (1934-2013) nos fala é ele próprio, nascido em Alexandria, num Egipto mesclado de etnias, crenças e culturas, com raízes italianas, helénicas e judaicas. Chamava-se Giuseppe Mustacchi e escolhera aquele nome artístico em homenagem ao seu ídolo Georges Brassens, com quem conviveu desde a chegada a Paris, em 1951, aos 17 anos.

Desembarcou ali com a vaga intenção de ser jornalista ou actor, mas acabou por se apaixonar sem remissão pelos acordes musicais, de que foi exímio praticante enquanto compositor e letrista: da inspiração dele saíram cerca de 300 canções, nenhuma tão famosa como Milord, que em 1958 ofereceu a Edith Piaf, namorada e musa. Teve muitas, de Juliette Gréco a Barbara - uma espécie de Ulisses de guitarra a tiracolo que se gabava de conhecer todas as praias do Mediterrâneo.

 

Compôs também para Henri Salvador, Yves Montand e Serge Reggiani, entre outros. Mas foi um disco em nome próprio a colocá-lo no patamar cimeiro da chanson. Um disco que abria com este Le Métèque, logo tornado campeão de vendas: seis semanas no primeiro posto, entre Abril e Junho de 1969. A canção mais escutada em terras francesas naquele último Verão da década. Cinco anos antes de outro Verão ao qual sempre a associarei.

Muitos ignoram hoje que esta foi também uma canção escrita para voz alheia. O autor quis oferecê-la a Reggiani, mas o intérprete de Le Déserteur devolveu-a, agradecendo: Le Métèque só podia ser o próprio Moustaki. Palavras ditas numa emissão televisiva de grande audiência, impulsionando a popularidade do tema, que não cessa de congregar admiradores e já viajou por muitas vozes. Da franco-italiana Pia Colombo, ainda nos anos 60, ao rapper francês Joey Starr, já este século. Até em português, gravada por este poliglota de longas barbas e voz cava, sem esquecer a doce e malograda Nara Leão ("com a minha cara de estrangeiro / de judeu errante e aventureiro...".) 

Seja em que idioma for, soará sempre como um terno brado contra a discriminação: meteco deixou de ser insulto e tornou-se emblema da condição humana. Ao som daquele bandolim grego capaz de nos transformar em peregrinos de uma nova Ítaca. Chame-se ela como se chamar, esteja ela onde estiver.

 

«Et je serai prince de sang / Rêveur ou bien adolescent / Comme il te plaira de choisir / Et nous ferons de chaque jour / Toute une éternité d'amour / Que nous vivrons à en mourir.»

 

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