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Delito de Opinião

As canções da minha vida (13)

Pedro Correia, 18.01.19

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DREAM A LITTLE DREAM OF ME

1931

 

Há canções com existência muito imprevisível. Nascem numa determinada época e permanecem décadas no limbo até se popularizarem em definitivo sem pré-aviso, adquirindo dimensão universal, numa época bem diferente. Como se estivessem fadadas para ultrapassar todos os testes de popularidade só quando confiadas à voz mais adequada ou à interpretação mais arrebatadora.

Aconteceu com aquela que hoje aqui trago. Um foxtrot ingénuo e agridoce, concebido nos dias amargos da Grande Recessão, quando a telefonia, o cinema e o disco – meios tecnológicos com existência ainda recente à época – funcionavam como janelas abertas para o sonho no quotidiano macilento e estreito de milhões de norte-americanos.

 

Dream a Little Dream of Me nasceu do talento de dois jovens músicos, ambos em começo de carreira: Wilbur Schwandt (1904-1998) e Fabian Andre (1910-1960), associados a Gus Kahn (1886-1941), letrista da Broadway que trabalhou na época áurea de Hollywood.

A gravação inicial foi difundida com êxito moderado a 16 de Fevereiro de 1931, para a editora Brunswick Records, a cargo de outro jovem: Ozzie Nelson, que em 1930 formara a sua orquestra ligeira, conquistando de imediato forte audiência na programação radiofónica. Dois dias depois, outro registo discográfico, trazendo a chancela da Victor Records e o som da orquestra de Wayne King, apelidado de Rei da Valsa, com Ernie Birchill como vocalista. Kate Smith – a quem chamaram Primeira Dama da Rádio – interpretou a canção também logo em 1931, tornando-a num marco do seu vasto repertório musical.

Nunca Schwandt e Andre, em conjunto ou separados, conceberam um tema tão popular e perdurável como este, que nas décadas de 40 e 50 conheceria múltiplas versões, nas vozes de Barbara Carroll, Joni James, Dean Martin, Doris Day, Louis Armstrong e Nat King Cole, entre outras. Só em 1950 teve sete registos discográficos, interpretados por gigantes do espectáculo e da música popular: Frankie Laine, Ella Fitzgerald, Jack Owens, Louis Jourdan, Vaughn Monroe, Dinah Shore e um duo formado por Bing Crosby e Georgia Gibbs.

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Em 1968, quando já pareciam ter ficado para trás os dias de glória desta canção praticamente quarentona à época, Dream a Little Dream of Me ressurgiu inesperadamente num ano-chave da música popular, no auge dos movimentos contra-cultura, parecendo navegar contra a corrente quando o som dominante era a batida rock. Esta súbita erupção do tema junto de uma nova geração de melómanos que nem imaginavam quem fora Ozzie Nelson ou Ernie Birchill deveu-se ao vulcânico talento de Cass Elliot, a vocalista dos Mamas & Papas, um dos emblemáticos grupos dessa era de todos os prodígios.

Estrela meteórica da década que revolucionou a música popular, Ellen Naomi Cohen nasceu em 1941: tinha 27 anos incompletos quando gravou este tema, incluído no quarto álbum da banda, intitulado The Papas & the Mamas Presented by the Mamas and the Papas. Mudara o nome quando ainda frequentava o liceu, como homenagem à actriz Peggy Cass. E também o apelido, uns anos depois, alegadamente em memória de um amigo íntimo entretanto falecido. Cass Elliot, também chamada Mama Cass por associação com o nome da banda, tinha uma voz possante e muito melódica, capaz de atingir os tons mais inesperados. Se alguém fazia a diferença como intérprete neste quarteto musical, era ela.

Os responsáveis da etiqueta Dunhill Records cedo perceberam isso: do longa-rotação extraíram o single, editado em Junho de 1968, com três minutos e 14 segundos de duração. Este Dream a Little Dream of Me em 45 rotações ascendeu ao segundo posto de vendas na dúbia categoria easy listening dos EUA e ocupou o top generalista australiano a 4 e 11 de Setembro desse ano, além de ter atingido a sétima posição no Reino Unido. Foi um sucesso indiscutível, no plano comercial: venderam-se sete milhões de discos. O destaque dado à vocalista na capa do vinil, intitulado Mama Cass with the Mamas and the Papas (na edição inglesa lia-se apenas Mama Cass), parece ter causado ciúmes no instável quarteto, que integrava também John Phillips (líder e principal compositor da banda), a sua então mulher Michelle Phillips e o canadiano Dennis Doherty.

 

Conta a lenda que os quatro cantarolavam com frequência alguns acordes deste tema quando se juntavam, nomeadamente nas sessões de estúdio. Por influência de Michelle, que vivera na infância com os pais na Cidade do México, onde Fabian Andre tinha residência próxima. Da brincadeira de bastidores à transição para disco, foi um curto passo. 

Era a mesma canção, mas não parecia. A própria Mama Cass confessaria mais tarde, em entrevista à Melody Maker, que pretendeu cantá-la «como se fosse um novo tema» naquela infeliz Primavera dos seus 26 anos – idade demasiado jovem para tantos amores frustrados e tanta dor irreversível que já lhe tingiam a biografia. Objectivo conseguido: sem o stacatto de anteriores versões, com uma dolência magoada, o tema ganhava densidade, vislumbrava-se ali uma subtil sugestão de angústia existencial para além do pretexto romântico.

Era uma balada antiga, mas parecia a mais recente do universo. Cass interpretava-a como se fosse a última canção da sua vida. Como se adivinhasse que morreria jovem – em 1974, aos 32 anos, deprimida e só. Como se intuísse que o seu brilhantismo vocal haveria de conferir um sopro de imortalidade àqueles singelos versos que hoje, já num milénio diferente, trauteamos com uma emoção sem rasto de fronteiras temporais.

 

«Stars shining bright above you / Night breezes seem to whisper "I love you" / Birds singin' in the sycamore tree / Dream a little dream of me // Say "nighty-night" and kiss me / Just hold me tight and tell me you'll miss me / While I'm alone and blue as can be / Dream a little dream of me.»

 

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