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Delito de Opinião

Arte, museus e boas surpresas

Ana CB, 18.07.22

Quando eu era miúda, de vez em quando a minha mãe gostava de pegar em mim e na minha irmã ao domingo e levar-nos a visitar um museu de Lisboa, ou um palácio ou monumento. Vivíamos nos arredores da cidade e ela nunca tirou a carta de condução, por isso a saída implicava uma viagem mais ou menos longa em transportes públicos, mas nada que a desencorajasse. O meu pai, que conduzia mas se apartava voluntariamente destas excursões – não sei se por razões de trabalho, de falta de vontade, ou porque as suas preferências se inclinavam mais para areia e mar – tinha no escritório os dois magníficos volumes de “As Maravilhas Artísticas do Mundo” do Ferreira de Castro (que nós só tínhamos o direito de abrir sob estrita supervisão parental), mas reservava as visitas a museus para quando viajávamos. Foi ele que nos levou pela primeira vez ao Louvre e ao Museu Britânico, teria eu uns 12 ou 13 anos, apesar de no ano anterior ter ignorado o MoMA em Nova Iorque. Na verdade, o interesse dos meus pais pelos museus tinha menos a ver com o gosto pela arte em geral do que com o prazer de observarem “coisas bonitas”, e a sua noção de beleza restringia-se ao que fosse classicamente identificável, melhor ainda se tivesse ouro ou prata à mistura. Estando as raízes de um e de outro em famílias humildes de origem rural, já era bastante disruptor o facto de os seus interesses incluírem a literatura e as artes plásticas, e na verdade foi suficiente para criarem nas filhas o gosto e um interesse mais alargado pelas artes.

 

Procurei replicar depois com o meu filho aquilo que os meus pais tinham feito comigo e a minha irmã, talvez ainda de forma mais exagerada e com algum sacrifício da parte dele. Nos episódios mais memoráveis está uma visita guiada ao Palácio de Mafra em que ele, com ano e meio de idade e se calhar já aborrecido de marchar (literalmente!) por tanto corredor interminável, decidiu fugir do grupo e atirou-se em corrida contra uma das estantes da famosa biblioteca; e uma incursão ao Louvre quando tinha cinco anos, no final de um dia em que já tínhamos percorrido um exagerado número de quilómetros a pé, em que aproveitou cada banco em cada sala para se sentar, sem um queixume, enquanto os seus impassíveis pais paravam a observar mais um quadro, mais uma escultura, mais um objecto. Apesar destes maus-tratos, creio que não ficou traumatizado, e ter escolhido para curso universitário precisamente uma área artística parece-me ser disso uma prova.

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Museu do Louvre, Paris

 

Da minha mãe também herdei algum jeito para o desenho, e até chegar ao ciclo preparatório dizia que queria ser pintora. Claro que para os meus pais isso não preconizava um futuro bem sucedido, e a pouco e pouco lá conseguiram orientar-me para outra área que eu também apreciava e prometia ser mais rentável O êxito dos seus esforços foi apenas parcial, e à medida que fui crescendo, cresceu também o meu apreço pelas várias formas de expressão artística, sobretudo pela pintura e o design (acabei por tirar depois um curso nesta área), com preferência especial pelas correntes modernas e contemporâneas. Os museus foram, obviamente, parte importante na descoberta do meu gosto – falo de um tempo em que a tecnologia ainda não tinha posto na ponta dos nossos dedos o acesso imediato a (quase) tudo o que se vai fazendo por esse mundo fora. Tínhamos os livros, o cinema e alguma televisão, e tudo o mais tinha de ser “ao vivo”. Sem os museus e as exposições temporárias da Gulbenkian, nos anos 80 não me teria apaixonado por Vasarely e a Op Art, por Escher e as suas construções impossíveis, pelas cores fortes das obras de Robert e Sonia Delaunay, pelo génio de Vieira da Silva, Paula Rego e tantos outros artistas portugueses, pelos objectos fabulosos de Lalique e as estampas estilizadas de Hokusai. Sem o Museu Nacional de Arte Antiga não teria conhecido, ainda bem novinha, os belíssimos biombos Namban ou a pintura onírica e angustiante de Bosch. Sem o Sintra Museu de Arte Moderna - Colecção Berardo (entretanto substituído pelo Museu das Artes de Sintra) nunca teria aprendido nada sobre a arte minimalista.

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Sala Lalique, Museu Calouste Gulbenkian, Lisboa

 

 

O espaço e a atmosfera

Nessa altura os museus, fosse qual fosse o seu tema, ainda eram maioritariamente espaços básicos de exposição (da obra de arte) e contemplação (por parte do visitante). Entretanto evoluíram, tal como as manifestações artísticas, e agora temos não só museus com exposições interactivas, muito orientados para atrair ou entreter camadas mais jovens da população, como também museus com espaços mais variados na sua concepção de base, mutáveis e criados para se adaptarem e realçarem as obras expostas, imaginados para enriquecerem a experiência do visitante e combaterem o cansaço que por vezes se instala quando os percorremos. Ainda me recordo da minha visita, há bastantes anos, ao Kunsthistorisches Museum de Viena, onde vi obras icónicas de Bruegel e Arcimboldo, só para citar dois dos grandes pintores representados nas colecções do museu – e que também incluem obras de ourivesaria, relojoaria, escultura e uma variedade enorme de outras peças. A meio da exposição, eu o meu filho, na altura adolescente, já tínhamos uma overdose de arte e de tédio, e estávamos ansiosos por chegar ao fim: as obras sucediam-se monotonamente umas às outras num ambiente meio soturno, expostas e iluminadas sempre da mesma maneira. Em franco contraste, no quarteirão ao lado, os vários museus que integram o Museumsquartier, dedicados à arte moderna e contemporânea, já eram na altura espaços bem mais interessantes e motivadores (apesar de eu nem sequer apreciar muitas das peças), menos pela diversidade do que expunham do que pela forma como as obras estavam organizadas.

 

Outro que me aborreceu solenemente foi o Museu Egípcio do Cairo. Abriga um espólio de tamanho descomunal e valor incalculável, mas mostrado ao público sem qualquer imaginação. Senti-me como se estivesse a visitar um armazém, às tantas já não podia ver à minha frente múmias, sarcófagos, estatuetas, amuletos e tudo o mais que é exibido – em lotes, em prateleiras, e em quantidade. Nem a sala da Colecção Tutankhamon escapa à monotonia, embora a observação das peças expostas seja obviamente bem mais excitante e o ponto alto da visita. Felizmente, prevê-se para Novembro deste ano, quando se celebra o centenário da descoberta do túmulo de Tutankhamon, a abertura (sucessivamente adiada) do GEM, o Grande Museu Egípcio em Gizé, que irá mostrar de forma condigna – a acreditar na divulgação mediática – parte das colecções do Museu Egípcio de Tahrir e do Museu Nacional da Civilização Egípcia. A visitar num futuro próximo.

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Museu Egípcio, Cairo

 

No capítulo atmosfera, um dos meus museus preferidos é o Victoria & Albert, em Londres. É provavelmente o maior museu do mundo de artes decorativas e design, com uma colecção permanente com mais de 4,5 milhões de peças que abrangem 5000 anos de história e versam temas tão variados como moda e têxteis, fotografia, teatro, pintura, arquitectura, joalharia, cerâmica, mobiliário, vidraria. Há objectos da Europa medieval, renascentista e barroca, do Médio Oriente islâmico, da Ásia do Sul, do Japão, e ainda a colecção Gilbert, com cerca de 1200 belíssimos objectos feitos à mão, na sua maioria miniaturas em metais preciosos, esmalte ou mosaico. As exposições distribuem-se por cinco pisos, com as colecções divididas por salas temáticas, e o museu consegue a proeza de não ser minimamente enjoativo para quem o visita. Tem além disso a vantagem de ser gratuito (apenas as exposições temporárias são pagas), tal como sucede com vários outros museus londrinos. Mais ainda, tem um café que abre para o jardim interior, e que também abre o apetite só de olhar para a comida exposta, e uma loja com artigos tão atractivos que apetece comprar tudo.

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V&A Museum, Londres

 

Foi a visitar vários dos excelentes museus de Londres que comecei a reparar tanto na diversidade de pessoas que povoam estes espaços, como na forma como elas observam as peças expostas, como se movem, como interagem com o museu – e como elas também contribuem para a atmosfera mais ou menos acolhedora do lugar. Gosto (e aproveito para fotografar) sobretudo quando há um ambiente descontraído, com pessoas que conversam umas com as outras, crianças que se sentam no chão, entretidas com uma qualquer actividade, casais que descansam relaxadamente num banco ou sofá – como se o museu fosse a casa de um amigo que visitam com frequência. Quando as pessoas se mantêm em silêncio ou falam em sussurros, como se estivessem numa igreja, e vão progredindo monotonamente umas atrás das outras, a fazerem lembrar objectos no tapete transportador de uma qualquer unidade industrial, o ambiente é bem mais aborrecido e desmotivante, mesmo que a exposição seja de grande interesse.

 

Tate Britain, Londres
Tate Modern, Londres

 

Outro museu de Londres que aprecio particularmente é o Tate Britain, que expõe colecções de arte britânica datadas do séc. XVI até à actualidade. Embora com grande incidência na pintura, os trabalhos que exibe abrangem todo o espectro das artes visuais. Tanto podemos encontrar aviões de combate transformados em obra de arte por Fiona Banner, como uma exposição temporária de esculturas de Henry Moore. Um dos mais importantes espólios à guarda da Tate é constituído pelo legado de J.M.W.Turner, considerado o maior pintor inglês, o qual engloba 300 pinturas a óleo e vários milhares de esboços e aguarelas, incluindo todos os trabalhos que se encontravam no estúdio do pintor aquando da sua morte em 1851. As obras de Turner são mostradas ao público num espaço especial, a Clore Gallery, em exposições que vão mudando pontualmente – e num ambiente que me faz ter vontade de ficar tempos infindos a olhar para cada quadro.

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Tate Britain, Londres

 

De vez em quando, sou surpreendida por exposições que me deixam maravilhada – e feliz! Aconteceu-me, só para dar um exemplo, quando há uns meses visitei o Fotografizka de Estocolmo. Creio que foi o bilhete de museu mais caro que paguei até hoje, mas valeu cada cêntimo. À entrada, um caminho de patas de cão estilizadas guiava-nos para o Pet Show: várias salas com fantásticas fotografias de animais de companhia, intercaladas com filmes e algumas esculturas, uma mostra de trabalhos de 25 artistas firmemente destinada a despertar emoções, desde a ternura ao riso e à angústia.

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Fotografizka, Estocolmo

 

No piso superior, a imersão num mundo ao mesmo tempo tenebroso e colorido: “Between These Folded Walls, Utopia” são obras concebidas pela dupla (Sarah) Cooper & (Nina) Gorfer, que associam fotografia e colagem em retratos híbridos de jovens mulheres que se viram forçadas a migrar. A ideia por trás deste projecto é chamar a atenção para as tragédias humanitárias e para a perda de identidade e reinvenção de quem é obrigado a afastar-se das suas raízes; ou, como afirmado no texto de apresentação, “a perda da utopia e a nossa capacidade de voltar a sonhar”. Num ambiente de quase câmara escura, os quadros fundiam-se por vezes com a própria parede em que estavam expostos, criando um impacto bem maior do que se estivessem simplesmente pendurados numa parede de cor neutra e completamente iluminada – prova cabal de que para lá da qualidade da obra que se expõe, a forma como ela é exibida faz toda a diferença.

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Fotografizka, Estocolmo

 

É também em Estocolmo que fica o Museu do Vasa, um dos museus mais originais e espectaculares que já encontrei nas minhas viagens, totalmente concebido em torno de um único motivo (e que não tem nada a ver com artes plásticas). O Vasa, navio de guerra do século XVII considerado o supra-sumo da tecnologia naval da época, naufragou na baía de Estocolmo durante a sua viagem inaugural em Agosto de 1628. Resgatado do leito marinho, quase intacto, nos anos 60 do século passado, à volta deste “artefacto” de inegável valor histórico e artístico foi construído um grande museu, onde ficamos a conhecer em pormenor toda a arquitectura e história não só do navio, como da época em que ele foi concebido, das pessoas que nele pereceram, e da forma como foi recuperado. A “estrela” da exposição é obviamente o próprio Vasa. Ver de perto uma nau verdadeira, não uma reconstrução ou embarcação imaginada, é no mínimo excitante. Pensar que esteve durante três séculos debaixo do mar e foi possível recuperá-la, preservando-a e colocando-a em exposição, é perceber o valor do trabalho dos milhares de pessoas (investigadores e não só) que têm contribuído para que a memória do mundo não desapareça. E ainda por cima é um regalo para os olhos, tanto pela riqueza artística das suas ornamentações como pela forma como está exposta e iluminada. O Museu do Vasa é, em todos os sentidos, um tributo ao engenho humano.

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Museu do Vasa, Estocolmo

 

 

Casas que são museus

Lugares de excepção são também as casas que já foram morada de artistas, ou que têm características tão especiais que foram convertidas em museus. Uma das minhas preferidas, neste caso por ser um exemplo primoroso da arquitectura do ferro portuguesa, é a Casa-Estúdio Carlos Relvas, que fica na Golegã. Figura proeminente da alta sociedade portuguesa da segunda metade do século XIX, proprietário de explorações agrícolas, inventor e fotógrafo de excepção, Carlos Relvas concebeu e mandou construir em 1872 uma lindíssima casa destinada a servir como estúdio fotográfico. Edifício original e ecléctico inserido num jardim romântico, é actualmente um museu dedicado à fotografia, e é para mim um dos edifícios mais bonitos de Portugal.

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Casa-Estúdio Carlos Relvas, Golegã

 

Em terras dos nossos vizinhos, o Museu de Arte Nova e Art Deco em Salamanca está alojado na Casa Lis, um palacete modernista construído em 1905-1906 em estilo Arte Nova mas seguindo os preceitos da arquitectura industrial. Foi mandada construir por Miguel de Lis, um empresário industrial da cidade, que encomendou o projecto ao arquitecto Joaquín de Vargas (que também concebeu o belíssimo edifício do Mercado Central de Salamanca). Uma das suas particularidades é ter duas fachadas bem distintas: a da entrada em pedra e ladrilho, e a maior, virada a sul e sobre um declive, em ferro e vidro. Outra é ter as suas salas dispostas em torno de um pátio interior, com uma abóboda de vitrais coloridos que, tal como os que decoram a fachada sul, são trabalhos de uma delicadeza e originalidade excepcionais e transmitem uma atmosfera quase diáfana às salas agora ocupadas pelas exposições. Na parte de trás do piso da entrada existe uma cafetaria absolutamente encantadora, decorada no estilo da casa e com vistas para o exterior através dos vitrais. Sou grande apreciadora dos estilos Arte Nova e Art Deco, mas confesso que nunca tinha ouvido falar deste museu até começar a preparar a minha viagem a Salamanca – e que lamentável teria sido passar ao lado desta preciosidade! As colecções do museu incluem um número impressionante de peças de artes decorativas criadas entre fins do século XIX e até ao final do período entre as duas Grandes Guerras. Há vidros, estatuetas, bronzes e esmaltes, jóias, leques e têxteis, mobiliário, e uma das mais importantes colecções de bonecas de porcelana em todo o mundo. A casa e o seu museu complementam-se na perfeição.

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Museu de Arte Nova e Art Deco, Salamanca

 

Nascido em Viena em 1928, o artista visual e arquitecto Friedrich Stowasser ficou conhecido para a posteridade pelo nome de Hundertwasser e pelas suas opiniões vincadas sobre a protecção ambiental e o repúdio pelas “linhas direitas” – princípios que estão bem visíveis no mural de azulejos “Submersão de Atlântida” que criou, por alturas da Expo 98, para a estação de metro Oriente em Lisboa. Tal como as suas obras, a casa onde viveu na sua cidade-natal é um edifício colorido e assimétrico tanto exterior como interiormente, onde até o piso foi concebido com ondulações (segundo ele, “um piso irregular é uma melodia para os pés”). É aqui que está actualmente instalado o Kunsthaus Wien, museu que expõe pinturas, trabalhos gráficos e arquitectónicos do artista. Visitá-lo foi imergir num mundo diferente, e saí de lá com toda uma outra visão sobre o que pode ser a arquitectura.

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Kunsthaus Wien, Viena

 

Irregulares e fora do comum são também as Casas Colgadas, na cidade espanhola de Cuenca. Em periclitante equilíbrio sobre o abismo cavado pelo percurso do rio Huécar, este pequeno conjunto de edifícios medievais de finais do século XV é uma visão simultaneamente excêntrica e encantadora. Nelas está instalado o Museu de Arte Abstracta Espanhola, que exibe em permanência uma colecção absolutamente notável de pintura e escultura de artistas espanhóis de meados do séc. XX. Distribuídas pelos vários pisos destas casas, em que o exterior e o interior estão em forte contraste, as salas de exposição são pequenas e acolhedoras, cada uma exibindo poucas obras, e o resultado é ao mesmo tempo intimista e dinâmico – e uma agradável surpresa para quem, como eu, gosta de arte contemporânea.

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Casas Colgadas, Cuenca

 

Tal como o seu excêntrico dono, a casa onde Salvador Dalí viveu entre 1930 e 1982 é tudo menos banal. Fascinado pela paisagem de Cadaquès, uma localidade junto ao Cabo Creus, no extremo nordeste da Catalunha, Dalí escolheu uma pequena casa de pescadores situada na Cala de Portlligat para aí instalar o seu refúgio – que habitou com Gala, a sua muito amada mulher, até à morte desta. Ao longo de quarenta anos acrescentou e transformou a pequena casa branca à sua imagem, decorando-a por dentro e por fora com cores e objectos dos mais díspares, a maior parte deles criados por si. Ali fez o seu atelier e ali recebeu os seus convidados e amigos – no entanto, apenas os acolhia nas dependências exteriores da sua casa, à volta da piscina, pois tanto ele como Gala eram extremamente ciosos da sua privacidade. Hoje a casa está transformada num museu, com visitas guiadas e rigorosamente cronometradas, onde quase tudo está preservado tal como em vida do pintor. É uma casa labiríntica, quase orgânica. Os vários espaços interligam-se uns com os outros, cada um tendo uma função bem definida. Nas palavras de Dalí, era “como uma verdadeira estrutura biológica, (...). A cada novo impulso da nossa vida correspondia uma nova célula, uma divisão”. Uma casa a roçar o surreal, tal como o seu criador.

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Casa Salvador Dalí, Portlligat, Cadaquès

 

Mais conhecida pelo seu espaço exterior – os incontornáveis Jardins Majorelle – a icónica casa azul e amarela que Yves Saint-Laurent comprou em 1980 em Marraquexe também inclui um museu. Complemento perfeito aos jardins, que são um autêntico oásis no calor marroquino, com vários ambientes exóticos onde a água e a cor são elementos importantes, o Museu Pierre Bergé das Artes Berberes expõe centenas de objectos, coleccionados ao longo dos anos por Pierre Bergé (mentor, sócio, companheiro e eterno amigo de Saint-Laurent) e pelo próprio costureiro. Articulado tematicamente em espaços distintos, o museu é ao mesmo tempo um testemunho e um tributo à riqueza e diversidade da cultura dos “homens livres” do Norte de África.

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Casa Majorelle, Marraquexe

 

 

Para lá dos museus

Por feliz coincidência, visitei Veneza durante a Biennale. Este evento de divulgação artística realiza-se desde 1895 e continua a ser um dos mais importantes do género – mesmo hoje em dia, quando são organizadas anualmente mais de 300 feiras e bienais de arte em todo o mundo (até finais do século passado eram apenas 50…). A cidade, já por si só senhora de um charme muito especial, deitava arte por todos os poros, com inúmeras manifestações e exposições à margem do grande acontecimento. As surpresas surgiam ao virar de cada esquina, num passeio pelos canais, numa montra, num jardim, na varanda de um hotel, em palácios e igrejas. Fiquei encantada com esta facilidade de convivência, com a enorme quantidade de exposições de livre acesso para o público, e com a descoberta de obras inesperadas até em situações triviais. E foi precisamente num local insuspeito, uma espécie de armazém na margem do Dorsoduro, longe dos Giardini da Biennale e das confusões, que tropecei por acaso numa das exposições mais interessantes que já vi até hoje, concebida à volta de um objecto que faz parte da vida diária de milhões de pessoas: a chávena de café. Criada pelo director cénico americano Robert Wilson para a conhecida marca de café Illy, e com o sugestivo título “The dish ran away with the spoon - everything you can think of is true”, esta exposição sensorial celebrava o 25º aniversário da Colecção de Arte Illy, que na altura já contava com 400 chávenas de café (e seus inseparáveis pires) com o formato icónico lançado pela marca, decoradas por 111 artistas de renome. Ao longo de sete salas sucediam-se ambientes surrealistas diferentes, parcialmente inspirados na Alice no País das Maravilhas de Lewis Carroll, cada um mais delirante do que o anterior e com grande impacto visual e sonoro. Uma exposição inesquecível.

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Exposição Illy, Veneza

 

De facto, se há país onde se respire arte, esse país é a Itália. No Palazzo Vecchio de Florença, depois de admirar o magnífico e recém-renovado Pátio de Michelozzo, dei por mim numa enorme sala povoada por figuras híbridas e desproporcionadas, estilizadas, estranhas, homens que são animais, animais com rodas… São assim as esculturas de Paolo Staccioli, ceramista toscano que expandiu entretanto os seus dotes para o bronze. Na Sala de Armas do Palácio, dividida em seis espaços definidos por pilares e abóbadas cruzadas, as esculturas estavam expostas como instalações individuais, mas visualmente unidas pela sua morfologia similar. Muito a propósito, a esta exposição foi dado o título “Nel Ventre Antico del Palazzo. Esercizi di guerra e giochi di bimbi”.

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Palazzo Vecchio, Florença

 

Em Madrid, o magnífico Palácio de Cristal, no Parque do Retiro, é lugar habitual de exposições temporárias, e ficou-me particularmente na memória a instalação criada de propósito para aquele espaço pela artista coreana Kimsooja e baptizada como “Respirar - una mujer espejo”: um espelho contínuo colocado no solo, que reflectia não só os visitantes (que tinham de entrar descalços) como também as cores do arco-íris criadas pela película de difracção translúcida que recobria a estrutura envidraçada do palácio. Como “música” de fundo, os sons da respiração da própria artista.

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Palácio de Cristal, Madrid

 

E na localidade de Alarcón, pequena vila na província espanhola de Castilla-La Mancha, existe uma igreja do século XVI que foi esvaziada e dessacralizada, e é hoje a “casa” de um projecto incomum executado pelo pintor Jesús Mateo. Apadrinhados pela UNESCO, que os classificou como obra de interesse artístico mundial, os murais criados por Mateo evocam, pelas formas e pelas cores, a pintura primitiva, ao mesmo tempo naïf e surreal. É uma obra esmagadora pela dimensão, surpreendente pelo contraste entre o vanguardismo da temática dos murais e o cariz religioso da arquitectura do edifício, simultaneamente envolvente e remetendo para espaços sem fim. Um lugar com alma própria, que se pode amar ou detestar, mas ao qual de certeza ninguém fica indiferente.

Afinal, não é este o cerne de qualquer obra de arte?

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Antiga igreja de São João Baptista, Alarcón

 

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