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Delito de Opinião

Arbitrariedade informal

Sérgio de Almeida Correia, 10.06.20

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Há dias era a Associação dos Advogados de Macau, fugindo à regra, que apelava aos seus membros para reportarem e denunciarem todas as situações de abuso, imposição de restrições e impedimentos ao exercício do mandato forense. O advogado Pedro Leal, um dos mais conhecidos e reputados penalistas locais, chegou a referir que por vezes anda 48 ou 72 horas à procura de uma pessoa; que quando se liga à procura de alguém a polícia diz que não está lá ninguém, e "andam a omitir constantemente a situação". A Polícia Judiciária desmentiu todas essas acusações num estranho comunicado para dizer que cumpre a lei.

Depois, foi a actuação perfeitamente desproporcionada e despropositada no Largo do Senado, por parte de agentes policiais, no final de tarde e noite de 4 de Junho de 2020. Não há quem não diga que está a cumprir "rigorosamente" a Lei Básica. Até quando se quer tapar o sol com uma peneira, considerando-se, para justificar a dualidade de critérios, que uma manifestação de apoio ao Governo Central não é uma manifestação, e como tal pode estar sujeita a outras regras.   

Ontem foi revelado no Telejornal da TDM (a partir do minuto 4:57) que uma rapariga de 19 anos foi abordada por dois agentes da PJ à paisana, obrigada a identificar-se, sem que estivesse a manifestar-se ou a fazer algo de ilegal, intimada a mostrar os seus pertences, e depois levada para uma carrinha, onde estavam mais cinco agentes à paisana, e transportada de Macau para a Taipa, sendo depois interrogada pela PJ no seu edifício do Cotai. Obrigada a assinar os documentos que lhe deram, em que dava o seu "consentimento" ao que os agentes quisessem fazer, questionaram-na sobre a sua vida pessoal e cívica, tendo-lhe sido pedido que desbloqueasse o telemóvel para que os fulanos pudessem ler o conteúdo das suas mensagens. No final, relatava esta manhã o Macau Daily Times, os agentes disseram-lhe que "ainda é jovem", que se concentrasse nos seus estudos e se deixasse de política.

Contactada pelos jornalistas da TDM sobre o triste episódio, a mesma Polícia Judiciária, que diz cumprir escrupulosamente a Lei Básica, confirmou o episódio e veio esclarecer que tinha sido qualquer coisa como uma "investigação informal". Nada de oficial, portanto. Não há crise. Cumpre-se a lei, dizem. 

Eu sei que ultimamente o clima se adensou, que passámos a ter uma Comissão de Defesa da Segurança do Estado, para uma cidade com menos de 700.000 habitantes, sem problemas de segurança e com milhares de câmaras de televisão nas ruas, parques de estacionamento e edifícios; e que em Abril deste ano, aquando da discussão das Linhas de Acção Governativa, se anunciou a criação de um Gabinete da Comissão de Defesa da Segurança do Estado, que deveria entrar em funcionamento "o mais rápido possível", e que muitos de nós já suspeitam dos movimentos nas ruas de algumas pessoas, e que não sabemos se são bandidos ou agentes policiais, porque todos andam "à civil", nem por que razão nos seguem e fotografam se cumprimos a lei e vivemos "às claras" (falo por mim).

De uma forma ou de outra, muitos já começaram a sentir o clima de medo, insegurança e arbítrio típico dos estado policiais. Cada dia que passa confirma-se, embora ainda nenhum livreiro (desconfio que já não haja cá nenhum) tenha sido raptado.

A Comissária dos Negócios Estrangeiros enche páginas de jornais, fazendo de conta que se tratam de artigos de opinião, normais, quero dizer, ao mesmo tempo que uma jovem estudante é tratada como uma criminosa, numa acção típica de uma polícia política, que identifica, vasculha e intimida sem razão aparente e por mera suspeita de simpatia para com os movimentos pró-democráticos.

Se não há uma polícia política, informalmente e sob diversas capas há quem faça as vezes dela, e esteja aí para fazer cumprir o princípio "um país, dois sistemas" de acordo com a sua própria interpretação. 

Há quem pense que tudo isto é normal, aceitável, e diga que os residentes, alguns nascidos aqui, são apenas "convidados". E que como tal têm é de ignorar garantias, direitos cívicos e os desvirtuamentos do que foi acordado porque isto é um "assunto interno". Enfim, devem ficar calados e participar na festa. Ou largarem casas e vidas e zarparem para outras paragens. 

Oficialmente é tudo sorrisos, croquetes e palmadinhas, seja no Dez de Junho, que hoje também se comemora numa versão "mini" devido ao Covid-19 (enquanto as equipas dos barcos-dragão vão treinando sem máscara e não respeitando distâncias entre remadores), seja em todos os restantes dias do ano. A gente está (quase) toda contentinha, apesar de quando em vez aparecer alguém, quando a coisa se torna demasiado grosseira, a queixar-se.

Sem querer pedir demasiado, e porque Camões continua, timidamente, entre nós, quero aproveitar esta oportunidade para alertar os nossos investigadores para a necessidade de se saber qual a contribuição que demos – todos, dos comerciantes e empresários aos magistrados, dos funcionários públicos aos jornalistas, dos advogados aos diplomatas, dos políticos aos militares – para a arquitectura do actual estado policial e para a preparação desta guarda pretoriana que na RAEM nos vigia e pastoreia nas ruas, nos escritórios e nas redes sociais. 

A menos que haja interesse de Portugal em que todos acabemos, justa ou injustamente, como é norma, por levar por tabela, ficando eternamente conotados, para o melhor e para o pior, sem que se separe o trigo do joio, com os tratos de polé que têm sido dados nos últimos anos, na RAEM, aos direitos fundamentais, liberdades e garantias dos residentes.

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