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Delito de Opinião

Aprendemos?

José Meireles Graça, 08.03.23

Conheci ao longo da vida alguns médicos estúpidos e alguns médicos inteligentes.

Os primeiros conheciam as regras da arte e daí deduziam que não há doentes, apenas doenças, e os segundos conheciam as regras da arte mas achavam que, por os doentes serem pessoas, cada caso era um caso; os primeiros não faziam diagnósticos sem recurso a uma bateria de meios auxiliares de diagnóstico e os segundos avaliavam o custo/benefício de tais exames e, se não houvesse risco de doença potencialmente séria, diagnosticavam com base na experiência; os primeiros fingiam ouvir e os segundos ouviam. Não há abissal diferença nos ganhos que uns e outros percebem porque o médico, hoje, é sobretudo um funcionário público ou privado que está num hospital ou num centro de saúde (há diferenças no preço que o cliente paga consoante o SNS está ou não envolvido – um outro assunto), nem aliás a diferença entre o bom e o mau médico é sempre facilmente perceptível para o doente.

A pandemia covidesca veio baralhar este suave arranjo porque as regras da arte pertenciam a umas diminutas capelas da igreja da medicina, que eram as dos epidemiologistas e virologistas, e estes, infelizmente, emitiram sinais contraditórios, ainda que no geral encantados com a sua súbita importância. Os médicos estúpidos e inteligentes compraram o conto da tragédia porque, coitados, do assunto pouco entendiam mais do que os comuns mortais, mas, ao contrário destes, podiam reclamar-se da “ciência” dura que a medicina não é, em que pese recorrer crescentemente, para progredir, a várias disciplinas científicas. 

Das divergências a opinião pública praticamente não tomou conhecimento porque desvalorizar dramas não é exactamente do interesse da comunicação social, nas fases iniciais o vírus chinês parecia realmente ameaçador e rapidamente o pânico se instalou, ao qual os poderes públicos, em democracia, responderam com um variável (segundo os países) catálogo de regras e interditos, atropelando leis e direitos como num estado de guerra, e, em ditaduras, com o mesmo sortido de medidas mas aplicadas radicalmente e sem tergiversações.

A desvalorização não era do interesse da comunicação social nem da magistratura de opinião. A qual abraçou com entusiasmo a causa do “combate”, que tinha a interessante virtude de obliterar parcialmente a diferença entre direita e esquerda e o incentivo de classificar de transviados e “chalupas” aqueles raros cidadãos que tentaram ver no meio do nevoeiro, não aderindo ao estouro da boiada. O que dá sempre um grande conforto às maiorias que acreditam em tontices.

Tontices eram, como agora lentamente se vai sabendo, com estudos que têm a vantagem de disporem de dados acumulados e sem a pressão da histeria que rotulou de “negacionistas” todos os que não compraram acefalamente o discurso situacionista. Daqueles recolho este, que o New York Times divulga, destacando da entrevista que o principal responsável concedeu:

“What about the utility of masks in conjunction with other preventive measures, such as hand hygiene, physical distancing or air filtration?

There’s no evidence that many of these things make any difference.”

Agora a doença vive, como muitas outras, entre nós, causando as vítimas que muitas doenças causam, sem particular comoção. Sobre as quais vítimas há aliás um pesado silêncio porque ninguém quer lembrar a velha que em Guimarães foi enxotada arrogantemente para casa pela polícia, ou o tipo incomodado por estar a comer na rua, ou a praia que um autarca demente mandou desinfectar e as cidades que colegas seus isolaram, ou os infectados que a “autoridade” de saúde resolveu prender em casa ou em hotéis, ou as empresas que faliram por não terem resistido à quebra de negócios, ou os miúdos que perderam um tempo de aprendizagem que jamais recuperarão, ou os que morreram sós porque eram pestíferos, ou toda a casta de abusos e atropelos em que a Constituição foi suspensa, o seu principal garante se acoitou em casa tolhido de medo e os responsáveis se passearam mascarados de cirurgiões, para dar o exemplo, aliás entusiasticamente seguido.

Acaso os tribunais, chamados algumas vezes a intervir, se tivessem para aplicar uma Constituição castrada no elenco dos direitos cidadãos contra o poder (que são os que definem axiologicamente o Estado de Direito) teriam servido para alguma coisa? É que o risco daquela amputação, que ao que parece tanto o PS como o PSD subscrevem em sede de revisão constitucional, pode bem ficar como a principal sequela da doença. A classe política, esquecemos, tende a comportar-se como uma burocracia, e esta jamais deixa que uma crise seja desaproveitada para efeito do reforço dos seus poderes.

E então, aprendemos alguma coisa para a próxima crise? Gostava de acreditar que sim, e que o manto de silêncio é fruto do cansaço e da vontade de esquecer – os erros, as conivências, o maria-vai-com-as-outras, os abusos, a invocação escandalosa, ao princípio, do suposto exemplo das medidas que a China tomou (estes ouvidos que o fogo há-de consumir ouviram a um daqueles magistrados recomendar a aplicação stayawaycovid inspirando-se no exemplo da China, a mesma China que mais tarde viria a execrar por ter escaqueirado a sua economia com o seu radicalismo acéfalo e ditatorial), as mortes por falta de assistência, consequência da mobilização exclusiva do SNS contra o monstro, e um longo rosário de efeitos perversos dos quais ainda não recuperamos definitivamente e que permanecem insuficientemente medidos.

Culpados não há porque quando são quase todos ninguém é. Mas do asneirol generalizado deveríamos retirar algumas conclusões: i) É sadio desconfiar das autoridades políticas porque estas ou querem reforçar os seus poderes, ou satisfazer interesses, e tendem a seguir a opinião pública que lhes garanta popularidade; ii) É imprudente dar poderes a funcionários porque o mundo deles resulta da especialização que calha os seus serviços terem, que confundem com o interesse geral; iii) Não se pode confiar na comunicação social porque tende a amplificar desastres e sufocar a serenidade e com frequência defende interesses opacos por razões de financiamento e sobrevivência, a mesma cuja necessidade tolhe jornalistas funcionalizados e aliás com frequência analfabetos; iv) Não se pode confiar nos formadores de opinião se estiverem a fazer tirocínio para carreiras políticas, defenderem amigos, forem economistas ou, já agora, em qualquer outro caso; v) Convém adoptar pontos de vista consultando fontes contraditórias e partindo sempre do princípio que a nossa cabeça é melhor do que a dos entendidos, mesmo que não seja; e vi) Quem defende o cidadão é a Constituição e os tribunais, e não é menos assim por aquela ser prolixa e programática de esquerda e estes lentos e ineficientes.

Da próxima vaga histérica vamos reagir com mais fleuma? E aprendemos alguma coisa? Quem souber que responda.

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