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Delito de Opinião

Ao lado de Yaremchuk e do seu povo

Sérgio de Almeida Correia, 24.02.22

_123387806_gettyimages-1238713436.jpg(créditos: Getty Images, daqui)

No momento em que escrevo estas linhas estão em curso operações militares russas no território soberano da Ucrânia.

Por volta das 4 horas da madrugada passada, o príncipe dos modernos autocratas anunciou aquilo que há muito se sabia que iria acontecer. Não porque a diplomacia tivesse falhado, mas porque decidira violar todas as regras do Direito Internacional e invadir o seu vizinho ucraniano.

Na arenga que produziu no Verão passado para justificar os actos de agressão contra o povo ucraniano, o ditador Vladimir Putin invocou uma série de argumentos, na sua maioria falsos e distorcidos, para justificar uma decisão que é a todos os títulos ilegal e que contraria a sua própria argumentação, esquecendo-se que ao fazê-lo coloca em causa a ordem mundial saída da II Guerra Mundial e pós-Guerra Fria. É esta que agora importa, com a qual vivemos desde 1945 e que tem permitido, mal ou bem, não obstante a existência de múltiplos e sangrentos conflitos um pouco por toda a parte, alguma paz e desenvolvimento no mundo.  

Putin contraria a sua própria argumentação, na medida em que, pelas palavras de Gromiko, ao tempo ministro dos Negócios Estrangeiros soviético, que mais não fez do que defender as posições oficiais, designadamente de Stalin e Molotov, ainda que à revelia da própria Constituição soviética então vigente para justificar a necessidade de para além da União Soviética, a Ucrânia e a Russa Branca (Bielorrússia) – inicialmente inclusive a Lituânia – terem direito a votos autónomos nas Nações Unidas, porque esses países tinham as suas próprias constituições e autonomia em matéria de assuntos externos: “they have their own constitutions and deal independently with their own foreign affairs” (cfr. Alger Hiss at Yalta: A Reassessment of Hiss’s Arguments against Including Any of the Soviet Republics as Initial UN Members, Journal of Cold War Studies, January 2020).

Esse assunto fora alvo de controvérsia e discussão na conferência de Ialta, e embora ninguém acreditasse na autonomia das repúblicas soviéticas, acabou por ser admitido pelos Aliados, fazendo com que a Ucrânia fosse um dos estados fundadores da ONU na Conferência de S. Francisco. A partir daqui a História não pode ser apagada.

Este é um facto incontornável que Putin pretende ignorar e fazer esquecer, pois que como todo o bom ditador tem medo da sua própria sombra e não se coíbe de alterar, deturpar e mentir para garantir a sua permanência no poder e da sua clique.

Se alguém tinha dúvidas sobre o calibre de Putin, um filibusteiro que se o deixarem atingirá o nível de um Estaline, de um Hitler ou de um Mao, perdeu-as com os acontecimentos das últimas semanas.

Com o reconhecimento das “repúblicas” independentistas do Donbass, Putin não rasgou somente os Acordos de Minsk, rasgou também a Carta das Nações Unidas e colocou em causa todos os periclitantes equilíbrios do pós-guerra.

E entrou nessa cruzada apoiado numa aliança espúria com a China, visto que quem anda à procura de prestígio e reconhecimento internacional; que quer, com razão, em função do seu peso demográfico, económico e direito ao desenvolvimento, ser um parceiro respeitado na arena internacional não pode fazer alianças, ainda que circunstanciais, com quem não tem palavra, não se dá ao respeito, se comporta como um selvagem e está a conduzir a Rússia e o seu povo para uma humilhação sem precedentes no tempo recente.

E não me venham alguns com a conversa de que a OTAN prometeu não se expandir para Leste quando todos sabemos que as negociações de adesão de qualquer um dos novos membros foram conduzidas com transparência para toda a comunidade internacional e no seguimento de decisões tomadas por estados soberanos que queriam reerguer-se livres da pata e da gula do urso russo.

E também não se queira estabelecer qualquer comparação com a crise dos mísseis em Cuba. Nem a Ucrânia é um fantoche totalmente dependente e na órbita do Ocidente, como era o regime de Castro em relação à extinta URSS, como também não é menos verdade que não há, nem nunca houve, mísseis instalados à socapa e pela calada da noite que estivessem apontados a Moscovo, ou incursões desestabilizadoras no território russo, violando as fronteiras do estado vizinho e que tivessem sido estimuladas e pagas por exércitos de mercenários para conduzir acções de intimidação e de natureza secessionista em países independentes, por capricho próprio e para satisfação de egos doentios.

Têm por isso mesmo todo o significado os discursos de ontem na Assembleia Geral da ONU, proferidos pelo Secretário-Geral António Guterres e o MNE ucraniano, premonitórios das acções militares de um “doente mental”, como lhe chamou o pintor russo Konstantin Bessmertny. A imagem de Putin na conferência de imprensa de há dias no Kremlin, em que destratou e humilhou em directo e perante o seu país e a comunicação social mundial um dos seus mais próximos colaboradores, é reveladora do seu carácter e da sua natureza intrínseca.

Tivesse a comunidade internacional tido uma atitude de firmeza perante a ocupação da Crimeia e nada disto teria hoje acontecido. Não estaríamos, como estamos, perante um conflito que se não for travado rapidamente poderá assumir proporções épicas e que será sempre catastrófico para o povo ucraniano, para o povo russo e para toda a comunidade internacional.

Seria bom que a China, como membro permanente do Conselho de Segurança, também o percebesse. A actual situação em nada ajudará à estabilização da sua situação interna ou à reunificação com Taiwan, não se vendo como se pode, coerentemente e sem hipocrisia, apostar ao mesmo tempo no apoio ao regime putinesco e ao seu ditador autocrático e conduzir internamente uma operação anti-corrupção e de "limpeza” de como não havia memória contra o abuso, o desvio e a apropriação indevida de recursos públicos.

Importa, pois, que Portugal e as nações livres de todo o mundo conjuguem esforços no sentido do restabelecimento da paz, colocando termo ao conflito, punindo severamente o agressor russo, mas também os seus aliados, e evitando a perda de mais vidas e a imposição de ainda mais miséria sobre um povo que apenas quer ser livre, viver pacificamente e sem ter de enfrentar as constantes ameaças, imposições arbitrárias e a prepotente miséria moral planificada do seu vizinho.

O saudoso Tony Judt sublinhou a importância desproporcional da Ucrânia na história russa e soviética, a qual se reflectiu na liderança da URSS (Khrushchev e Brejenev eram russos vindos da região leste da Ucrânia, Chernenko era filho de kulaks ucranianos deportados para a Sibéria, Andropov foi director do KGB na Ucrânia), mas isso não é culpa dos ucranianos, e nunca representou uma maior consideração dos russos pelo povo ucraniano ou podia apagar uma história de “independência descontínua”.

Convirá ainda não esquecer que após a queda do Muro de Berlim foram os comunistas do Soviete da Ucrânia, liderados por Leonid Kravchuk, um apparatchik, não um peão do imperialismo dos EUA, que em 16 de Julho de 1990 votaram a chamada declaração de soberania a favor do estabelecimento das suas próprias leis e para terem as suas forças militares.  

E ainda há dias, na New Yorker, Masha Gessen recordava que “Hannah Arendt observed that totalitarian regimes function by declaring imagined laws of history and then acting to enforce them.”. Este é mais um desses casos. Não nos iludemos com a propaganda.

Nestes momentos é preciso saber de que lado se está. E manifestá-lo sem receio. Eu estou do lado de Yaremchuk e do povo ucraniano, em defesa da sua liberdade de escolha, do seu direito a viver em paz, e de um mundo mais livre e mais seguro, contra a ditadura de Putin, os seus amigos, os idiotas úteis, os parceiros de ocasião, a sua corte de mercenários, dependentes e capangas.

Não passarão.

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