Ao 13º dia
Desde o princípio que as pessoas, perplexas com a invasão da Ucrânia, se inscreveram no grupo dos racionalistas, dos instintivos ou dos comunistas.
Eliminemos os últimos: são hoje uma insignificante minoria e, em matéria de relações internacionais, estão do lado oposto ao dos americanos pela mesma razão que o cão de Pavlov salivava, de modo que é um exercício ocioso entender-lhes as razões. Ainda que, como pululam pela comunicação social, gente boa e outra nem tanto se dê ao trabalho de lhes escaqueirar os raciocínios.
Os racionalistas querem entender os dois campos, não dispensando, porque não pode ser, a perspectiva histórica. O mestre dessa maneira de pensar, Vasco Pulido Valente, já cá não está mas como via ao longe escreveu isto em 27 de Fevereiro de 2015 (quem não conseguir abrir pode ir aqui, onde o texto está transcrito), uma demonstração do motivo porque ele era único e não deixou herdeiros. E, conscientes desse pano de fundo, analisam as circunstâncias objectivas de cada caso, deduzindo futuros e, quando atrevidos e voluntaristas, soluções.
Já lá vamos. Quem quiser entretanto ver que gente é aquela, e como e porquê se vê naqueles assados, pode fazer pior do que ouvir um podcast no Spotify da série The Rest is History, episódio 155, ou este da série E o Resto é História, do Observador.
É aqui que a porca torce o rabo. Porque a história ajuda-nos a reconhecer padrões de comportamento e as causas que subjazem às decisões políticas, mas não garante que, debaixo das aparências, algumas coisas não estejam efectivamente a mudar.
Se no mundo, e em particular no espaço da UE, houvesse apenas Vitais Moreiras, o destino de milhões de ucranianos estava traçado – é ver a lista de motivos que com doutoral suficiência elenca para entregar desde já Zelensky e os seus concidadãos aos cães. Nas palavras dele:
… não será altura de a União Europeia, sem prejuízo da condenação da invasão e da solidariedade com Kiev, reponderar a sua atitude passional e de alinhamento acrítico com Washington, atirando gasolina para a fogueira, e encarar a possibilidade de se tornar num fator ativo de moderação, em prol de um cessar-fogo e do início de negociações para a paz?
Este palavreado refere-se a negociações mas do que se trata é de ceder às exigências de Putin: reconhecer a perda da Crimeia, alterar a Constituição para garantir que a Ucrânia jamais pertencerá à OTAN e reconhecer a “independência” das duas republiquetas secessionistas.
Vital é um apparatchik ideológico das instâncias europeias, como antes era da URSS: para ele a opinião pública não é mais do que a soma das ignorâncias avulsas de milhões de cidadãos, que devem ser iluminados pelos catedráticos da opinião alinhada; e decerto os ucranianos não estão a ver o que lhes convém ou, se estão, que recolham às catacumbas da inexistência para não perturbar o mundo burocrático de Vital.
Sucede que a verdadeira razão pela qual as instâncias europeias e as autoridades americanas são obrigadas a prestar, em parte, apenas lip service à causa ucraniana é o respeito pela respectivas opiniões públicas – os instintivos. Estas intuem que os ucranianos que morrem ao serviço de uma causa provavelmente perdida defendem algo que é parte constituinte do corpo de ideias do Ocidente, entre outras coisas um módico de respeito pelo Direito Internacional que Putin ofende com impunidade e o direito de um país reconhecido pela comunidade internacional escolher as suas políticas e as suas alianças.
Impunidade é como quem diz: porque quanto maior for a desgraça dos ucranianos maior o capital de ressentimento, mais sólidas as bases para uma futura correcção do torto e mais segura a contenção dos chineses na tentativa de resolverem o “problema” de Taiwan.
Os Ucranianos estão-nos a defender; Putin não. E mesmo que o efeito boomerang das sanções, os problemas da integração dos imigrantes, a situação no terreno e o cansaço venham a provocar um efeito de fadiga, e logo o evoluir da opinião pública para teses derrotistas, não é preciso empurrar.
Hoje sou Ucraniano. De paleio, é certo, no conforto do meu sofá. Vital nem isso é.