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Delito de Opinião

Antigamente...

Cristina Torrão, 06.04.21

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Imagem encontrada na net, sem indicação de autor

De vez em quando, lá oiço alguém afirmar convicto: antigamente, os Portugueses escreviam muito melhor (…) Estou em crer que quem tal afirma revela alguma ingenuidade. No fundo, está a deixar-se levar por uma imagem idealizada do «português de antigamente».

Aplaudo esta crónica do professor e tradutor Marco Neves. Hoje esquecemo-nos de que Portugal, até meados do século XX, era um país de analfabetos. Não só por me interessar por História, como por andar a consultar livros paroquiais antigos, a fim de fazer a crónica da família, estou em constante contacto com o passado. E, quando reflicto sobre questões destas, gosto de ir procurar casos concretos, precisamente, na minha família, uma típica família portuguesa, que, salvo raras excepções, não pertencia à “elite” frequentadora da escola.  

Apesar de ter tido a sorte de nascer num lar de professores primários e começado a juntar as primeiras letras com quatro anos, não preciso de ir muito longe, a fim de confirmar o analfabetismo que grassava no nosso país até meados dos anos 1980. Não tenho pejo em afirmar que, dos meus quatro avós, só o meu avô materno se sentou nos bancos escolares, concluindo o antigo quinto ano do liceu e tornando-se funcionário público.

O meu avô transmontano sabia ler e escrever por ser autodidacta. Começou a aprender durante a tropa e desenvolveu os conhecimentos ao longo da vida, tornando-se numa ajuda preciosa para os habitantes da sua aldeia. As minhas duas avós eram analfabetas, a materna pediu-me muitas vezes para lhe ler alto as legendas dos filmes (normalmente, era o meu avô que lhas lia). A minha avó transmontana nem sequer se habituou à televisão, apesar de os filhos lhe terem oferecido uma, tinha ela já quase setenta anos.

Se recuar ainda mais, até aos meus oito bisavós, penso que também só um deles estudou, era funcionário das Finanças, como o filho viria a ser. Casou com uma jovem de família conceituada da Mealhada, mas sinceramente não sei se essa minha bisavó sabia ler e escrever. Nascer num berço algo privilegiado, não era garante desse tipo de aprendizagem, para uma mulher. Todos os outros seis bisavós eram analfabetos.

Depois da Revolução de 1974, fez-se muito esforço para acabar com o analfabetismo. Sei isso igualmente por experiência pessoal: o meu pai preparou muitos adultos para o exame da 4ª classe.  Por isso, tal como o professor e tradutor Marco Neves, eu pergunto: quando foi essa época em que escrevíamos muito melhor?

No tal antigamente, a maior parte dos portugueses não escrevia. Haverá quem prefira que poucos escrevam — sempre evitam ler textos com erros. Mas até isso é uma ingenuidade: olhamos para o passado e, de todos os textos de quem escrevia (e eram poucos os que sabiam fazê-lo), só vemos os textos que sobreviveram ao turbilhão do tempo, só nos lembramos dos bons textos.

Este é aliás um erro comum, não só no que diz respeito à escrita. Como a memória não é perfeita, lembramo-nos mais facilmente daquilo de que gostámos do passado — e acabamos por idealizá-lo. A memória é uma peneira que, do passado, nos dá apenas os diamantes. A lama, essa, fica escondida na aridez dos números e de alguns livros de História.

Comparar a escrita dos dias de hoje apenas com os bons escritores do passado é um erro muito mais grave que qualquer cedilha fora do lugar.

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