Angola, berço e túmulo de Sita Valles
Estamos infestados de indignações selectivas. A todo o momento se erguem palavras de ordem contra as mesmas ditaduras e se invocam as mesmas injustiças com localização precisa no tempo e no espaço. Enquanto outros actos repressivos são silenciados. Como se nunca tivessem existido.
Entre as omissões mais chocantes figura a actuação do MPLA nos anos pós-independência de Angola. Quando a tropa portuguesa deu lugar a um largo contingente neocolonial cubano. Quando a PIDE ressuscitou, baptizada de DISA. Quando a pena de morte foi restabelecida e vigorou até 1992. Quando as execuções extrajudiciais se tornaram moeda corrente. Quando o ditador angolano, Agostinho Neto, proclamou: «Não vamos perder muito tempo com julgamentos, vamos ditar uma sentença.»
Disto nos fala o desassombrado documentário Sita – A Vida e o Tempo de Sita Valles, realizado por Margarida Cardoso e há dias exibido na RTP2. Centrado numa jovem médica angolana de origem goesa que militou no PCP clandestino, ascendeu a segunda figura mais importante da União dos Estudantes Comunistas após o 25 de Abril e no Verão de 1975 decidiu regressar a Luanda para ajudar a edificar o novo país.
Angola, que lhe servira de berço, também foi seu túmulo. Um túmulo apenas metafórico, pois Sita Maria Dias Valles (1951-1977), assassinada após uma alegada insurreição para derrubar Neto, nunca mereceu funeral nem teve sequer direito a certidão de óbito. Foi capturada, acusada pelos esbirros do poder de conspirar contra o Estado e liquidada sem se saber ao certo quando nem como. Deixou um filho de três meses, fruto do seu casamento com José Van Dunem, político também assassinado em circunstâncias jamais esclarecidas. O menino viria a ser criado por sua tia Francisca, até há pouco ministra da Justiça em Portugal.
Sita situa-nos nessa data sinistra: 27 de Maio de 1977. Em que o MPLA condenou à execução sumária dezenas de milhares de pessoas. Incluindo alguns dos seus melhores quadros jovens nos centros urbanos do país. Acusados de conspirar contra o Estado. Rotulados de «fraccionismo», quando a dissidência se pagava com a vida. Muitos enlameados em vergonhosas colunas do Jornal de Angola e tratados como lixo humano aos microfones da rádio estatal, entre miseráveis apelos ao linchamento.
O país encheu-se de valas comuns. A Amnistia Internacional concluiu que as vítimas mortais da repressão – prolongada por dois anos – terão sido pelo menos 30 mil.
Sobre este massacre, caiu um véu de chumbo. Não apenas em Angola: também em Portugal. Começando pelo PCP, que viu desaparecer dezenas de militantes nesta onda sanguinária sem um esboço de protesto. Neto, falecido em 1979, foi sendo enaltecido como humanista e «libertador». Pepetela, colunista do Jornal de Angola em 1977, ainda recebe vénias intelectuais.
Afortunadamente, alguns dos torturados sobreviveram para contar. Um deles é o actual ministro da Economia: António Costa Silva chegou a ser encostado ao muro da prisão, numa simulação de fuzilamento que recorda em impressionante depoimento no documentário, 45 anos depois.
Ainda bem que o silêncio se rompeu.
Texto publicado no semanário Novo.