Amores perfeitos
Já me tenho perguntado se farei parte do número de pessoas que gostam mais de animais do que de gente. É que há provas que me incriminam. Já chorei muito mais pela perda de um gato do que por vários parentes próximos que se finaram. E o pior é que quando penso nisso não sinto culpa, apenas perplexidade.
Enquanto escrevo estas linhas olho para o Boogie, o meu erro de casting, que se aninhou, esfíngico, a dois palmos de mim. No deve e haver dos afectos, este está claramente em vantagem. Nunca o verguei. É demasiado selvagem para se render a afagos e latas de whiskas. Da sua estirpe rafeira constam muitos sobreviventes, não duvido. Trinca espinhas que resistiram à fome, ao frio e à crueldade humana com todas as ganas. E lá estou eu a justificar-lhe a agressividade opondo-o aos da minha espécie, que tenho sempre mais dificuldade em desculpar. Vai-se a ver e é isto. O amor que reservo para os humanos é mais exigente.
Tem dias em que me apetece atirar o meu hóspede pela janela, porque é um sacana de um gato impossível de domar, interesseiro, egoísta, altivo e arisco. Mas depois penso que é apenas um animal bravio que nunca há-de perceber nada de nada. Até de uma criança pequena se espera mais entendimento.
Os animais não compreendem nada de nada, estão a milhas da nossa complexidade. Podia até ser um monstro que este estúpido gato não perceberia. Talvez o maior conforto que os animais nos dão seja esse: são incapazes de nos julgar e até os mais ariscos nos aceitam tal como somos.
Amar nestas condições é tão fácil, que não resisto. Duvido que quando este gato me morrer fique lavada em lágrimas, como já me aconteceu com outros animais que tive, mas sei que vou sentir-lhe a falta, porque faz bem beneficiar desta aceitação sem restrições. Se a isto ele juntasse o amor irracional e portanto sem limites, de que tantos bichos são capazes - e não falo só de cães e gatos, mas de seres tão bizarros como cágados, tão minúsculos como passarinhos - levar-me-ia ao tapete e mais uma vez a perguntar-me se porventura gosto mais de animais do que de pessoas.
Mas a pergunta, bem vistas as coisas, não é esta. A pergunta é: "Gosto mais de amar animais ou pessoas?". A resposta, que não é linear, leva-me à verdadeira questão de fundo: "É mais fácil amar animais ou pessoas?"