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Delito de Opinião

Amigos de aluguer

Ana CB, 21.01.22

Li num artigo que em Tóquio é possível alugar amigos. Ou seja, pagar a alguém para ser nosso amigo durante umas horas. Os “amigos de aluguer” entrevistados contam as histórias mais variadas, desde serem contratados para passarem por familiares de uma noiva, posarem para selfies no Instagram, fingirem ser um namorado ou namorada, ou serem apenas correspondentes por email. No entanto, a grande maioria das pessoas que os contratam apenas querem companhia: para ver TV, ir às compras, ou simplesmente conversar.

Para quem trabalha nesta área, a motivação não parece ser o dinheiro – o valor que recebem por hora não é assim tão alto quanto isso (sobretudo num país caro como é o Japão), e a procura destes serviços é sempre incerta. Há quem diga que é o desejo de ajudar quem precisa de algumas horas de conforto emocional, ou quem o faça para quebrar a rotina de um emprego estável mas algo monótono. Alugar a nossa amizade a estranhos em troca de dinheiro parece estar algures entre um passatempo e a prestação de cuidados paliativos.

O que é que isso diz de uma cidade como Tóquio, tida como superdesenvolvida e onde há lugar para todas as excentricidades? E o que é que diz sobre a sociedade japonesa, que é supostamente tão correcta e amigável? A explicação dada no artigo é que no Japão, o importante é a fachada, o exterior impecável, a aparência de que está tudo bem. As pessoas não estão habituadas a mostrar o seu lado mais vulnerável, têm dificuldade em abrir-se com os outros. Não se tocam. Não exprimem as suas emoções. Psicologicamente, não estão bem, mas não partilham o que sentem, e não procuram ajuda – porque há um estoicismo, transversal a toda a cultura japonesa, que faz com que se vejam obrigados a aguentar tudo sem darem parte de fracos. Nas redes sociais podem até mostrar uma vida feliz, alegre e preenchida, mas muitas vezes tudo não passa de uma mentira.

Num país onde é normal ter um horário laboral diário de 10 horas e frequentemente o convívio se resume à família e aos colegas de trabalho – com o habitual distanciamento físico e emocional já firmemente incorporado nos hábitos sociais – sobra pouco espaço e tempo para construir amizades verdadeiras, e menos ainda duradouras. Num país que é tecnologicamente muito desenvolvido, culturalmente avançado (e esta é a explicação mais invocada para as reduzidas taxas de infecção e morte por covid-19 que o Japão tem mostrado), hiperprodutivo, politicamente estável e etnicamente homogéneo, esta incapacidade de ter e manter amigos parece coisa de ficção científica – e daquela mais pessimista.

Como latinos que somos (e optimista que sou), estou em crer que por cá a “moda” não irá pegar. Mas… este retraimento a que somos forçados há quase dois anos, somado à apetência cada vez maior pelos smartphones e à substituição de formas de entretenimento interactivas por quilómetros de scroll e horas passadas a jogar ou nas redes sociais, não são um bom indicador do que poderá ser o futuro próximo, sobretudo para as gerações mais jovens – que desconhecem o poder reconfortante das tardes à conversa com os amigos num qualquer café de bairro.

4 comentários

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    Ana CB 23.01.2022

    Cada cultura tem os seus hábitos sociais. Tive uma colega brasileira que dizia que teve alguma dificuldade em adaptar-se ao nosso país porque achava os portugueses muito fechados. Passados uns anos, quando regressava de férias no Brasil confessava-se com pouca paciência para as conversas das amigas brasileiras, que ela já achava muito fúteis. Mesmo sem darmos por isso, a sociedade em que vivemos vai-nos moldando devagarinho. Quando leio artigos deste género, ou livros de escritores japoneses, causa-me sempre uma certa estranheza aquela contenção subliminar que parece fazer parte da cultura tradicional japonesa (e sou uma admiradora confessa de muitos dos seus aspectos culturais), e que convive simultaneamente com as maiores excentricidades. Se a delicadeza no trato e o respeito pelos outros me parece ser um hábito saudável, este tipo de comportamento levado ao extremo acaba por criar algum isolamento e coloca entraves às relações interpessoais francas e duradouras. Como seres gregários que somos, precisamos de ter na vida outros seres que nos sejam próximos em todos (ou quase) os aspectos. A bem da nossa sanidade mental.
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    João Pedro Pimenta 23.01.2022

    Exatamente. A mim causa-me alguma espécie como é que os japoneses, que deram mostras de uma ferocidade e crueldade terríveis durante a II Guerra (contra os prisioneiros, por exemplo), caem agora em extremos de excessiva delicadeza ou fechamento sobre si mesmos.
    (Entretanto, bem vindo ao Delito, Ana).
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    Ana CB 23.01.2022

    A cultura japonesa sempre foi um bocado extremista, e têm muito imbuída aquela ideia do estoicismo, do rigor, dos protocolos e cerimoniais. Dor e delicadeza para eles não são incompatíveis.
    (Obrigada! :)))) )
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