Amava a arte porque amava a vida
António-Pedro Vasconcelos (1939-2024)
Devo a António-Pedro Vasconcelos - e disse-lhe isto, de viva voz - três bens inestimáveis. Ele, sem fazer a menor ideia, ajudou-me a crescer enquanto leitor, ajudou-me a distinguir a boa da má escrita e ajudou-me a ver cinema com outros olhos.
Li-o durante décadas. Já não na mítica revista Cinéfilo, que o ajudou a catapultar para a fama com a sua verve crítica e o apuro formal da sua prosa, mas em publicações diversas, desde a revista Grande Reportagem, há muito desaparecida, até ao semanário Sol antes da recente deriva que até o nome lhe alterou. Sem esquecer O Independente, onde publicou alguns dos seus melhores textos. Fazia parte daquela geração - com Vasco Pulido Valente, António Barreto e alguns outros - que nos ensinou a escrever. Prosa enxuta, direita ao assunto, sem adjectivos nem advérbios que pesam como chumbo. Contundente, mas com elegância e estilo.
Com o decorrer dos anos, habituei-me a seguir com proveito as suas recomendações literárias. Recordo várias, desde A Cartuxa de Parma até A Breve e Assombrosa Vida de Oscar Oscar Wao, de Junot Díaz. Passando por A Consciência de Zeno, de Italo Svevo - por coincidência um dos livros que tenho de momento à cabeceira. Obras que me fizeram amadurecer, não apenas como leitor mas também na escrita.
Escolher quem nos inspira é essencial neste percurso.
Mas é como cinéfilo militante que mais lhe devo. Na década de 70, a RTP 2 dedicava parte importante da sua programação a clássicos da Sétima Arte. Fui espectador devoto desse magnífico desfile de filmes, sob a designação Cineclube. Antes da projecção ele falava-nos durante breves minutos sobre cada um, educando-nos o olhar com palavras simples, sem prosápia didáctica nem pompa académica. Aprendi muito com ele sobre John Ford e Otto Preminger, por exemplo.
A sombra de Preminger perpassa naquele que seria o seu filme mais emblemático: O Lugar do Morto, surgido em 1984 - film noir que tão bem reflecte a atmosfera daquele Portugal pós-revolucionário, com Ana Zanatti e Pedro Oliveira nos principais papéis, saltando com sucesso dos ecrãs da RTP para a tela grande do cinema.
Foi o maior êxito de bilheteira na produção nacional daquela década. E também um marco na reconciliação entre o público e a arte cinematográfica falada em português, causa em que António-Pedro militou com a paixão que o caracterizava em tantos outros temas, da política ao futebol. Ele e José Fonseca e Costa - autor de Kilas, o Mau da Fita e Sem Sombra de Pecado - advogaram sempre um cinema feito para o público, não contra ele. E sem o Estado a impor "políticas de gosto" a troco de subsídios. Nunca escondeu o desprezo por aqueles que arruinaram a indústria cinematográfica europeia reduzindo o cinema a obscuro ritual de seita, distanciado do mundo, divorciado da história.
Ao contrário dele. Era um homem que apreciava uma boa conversa, uma boa refeição, um bom jogo de futebol. Homem multifacetado, por vezes contraditório, com amigos de todas as idades e convicções. Homem que não escondia aquilo de que gostava nem o que detestava, sem se refugiar em meias-palavras e recusando precauções sonsas, tão frequentes em Portugal. Homem que amava a arte porque amava a vida. Como bem demonstrou em vários dos seus filmes: basta mencionar Jaime (1999), Os Imortais (2003) ou Os Gatos Não Têm Vertigens (2014).
Era eu aprendiz de crítico de cinema quando em 1984 acolhi com vibrante aplauso O Lugar do Morto no jornal onde escrevia. Cada geração tem os seus filmes de culto, adoptei logo este entre os meus. Pouco depois entrevistei-o no seu apartamento, num quinto andar da Rua do Quelhas, na zona de São Bento. Mal lá entrei contemplei, fascinado, uma estante cheia de marcas amarelas: eram as lombadas da revista Cahiers du Cinéma: colecção completa. Não admirava que ele fosse uma enciclopédia do cinema naquele tempo muito anterior à Internet, quando palavras como Google e Wikipédia ainda não tinham sido inventadas.
Foi uma das entrevistas que mais gostei de fazer como jornalista profissional. Quase vinte anos depois reencontrei-o à mesa do Pap'açorda original, no Bairro Alto. Ele era o convidado de uma rubrica que mantive durante bastante tempo no Diário de Notícias em que conversava com figuras da política ou da cultura apenas sobre temas gastronómicos. Também nisso era enciclopédico. Demarcando-se daquela ridícula pose de alguns vultos que se mostram distantes dos prazeres mundanos.
Reencontrei-o por acaso há cerca de nove meses. Na esplanada do Matriciano, um dos meus restaurantes italianos favoritos de Lisboa. Ele sentara-se na mesa ao lado: houve tempo para lhe recordar aqueles nossos encontros que tão grata memória me deixaram. Depois lá foi, de passada larga, chapéu borsalino na cabeça, naquele inconfundível andar que tanto me recordava o Senhor Hulot, genial criação de Jacques Tati. Ninguém lhe daria 84 anos: sempre pareceu mais jovem.
Ia apresentar uma petição na Assembleia da República - contra a privatização da TAP, uma das últimas grandes causas em que se envolveu. Entre tantas outras, ao longo de muitos anos, da oposição a Luís Filipe Vieira no Benfica à luta contra o famigerado "acordo ortográfico". Sem esquecer a campanha presidencial de Mário Soares, em 1985-1986: foi um dos raros que estiveram com ele sem desfalecimentos, do princípio ao fim. Manteve o entusiasmo mesmo quando tudo parecia perdido. Eram as causas de que mais gostava: as causas perdidas. Como um herói romântico do século XIX.
O cinema imita a vida, a vida imita o cinema. Marcado desde o Verão passado por uma tragédia pessoal (a morte inesperada de Diogo, o filho mais novo), António-Pedro foi-se apagando como vela ao vento. Aquele perene sorriso extinguiu-se: chegara o momento do pôr-do-sol. Desapareceu dias antes do 85.º aniversário, que nunca iria festejar.
«O meu ofício é contar histórias através de imagens e de sons. Serão o público e a posteridade a decidir se os meus filmes têm algumas condições para ficar na memória das pessoas. Se são arte, não me cabe a mim definir. Não gosto de rotular à partida se sou artista ou não: sou profissional, gosto mais do termo profissional.» Era assim, falando de si próprio sem prosápia de espécie alguma. Em nítido contraste com tantos medíocres que pululam por aí.
É de Stendhal a extraordinária frase que lhe serviu de lema: «Deseja tudo, espera pouco, não peças nada.» Também isto lhe devo: esta divisa (agora com vénia eterna para ele) tornou-se minha também.