Ainda sobre o 48.º aniversário
Há muitos anos que não se celebrava um aniversário da Revolução que derrubou a ditadura do Estado Novo, num enquadramento tão propício a apreciarmos os valores democráticos. E não me refiro apenas à guerra em curso.
A liberdade a que este dia de há 48 anos abriu a porta foi celebrada com as cerimónias protocolares habituais, mas, talvez sem o destaque merecido, foi celebrada também pelo fim da obrigatoriedade do uso da máscara.
Imagem DN
Nestes cerca de dois anos que passaram, as máscaras impostas pela pandemia, que agora parece recuar, além de terem escondido indiscriminadamente lábios e sorrisos, perturbaram a forma como comunicamos, atrasaram a aprendizagem da fala aos mais novos, fizeram que muitas crianças não se recordem dos sorrisos das suas educadoras, impediram que reconhecêssemos amigos com que nos cruzámos, atrapalharam e reduziram a quantidade dos beijos dados pelos amantes e alteraram a forma como nos cumprimentamos.
É claro que também ocultaram os dentes cariados e falhos dos mais humildes, proporcionaram-nos uma desculpa para podermos ignorar pessoas que não queríamos realmente cumprimentar e até, talvez apenas, ajudaram-nos a entender melhor o que é o mau hálito.
Como animais de hábitos que somos desenvolvemos alertas visuais sempre que num espaço público víamos alguém sem o devido resguardo facial. Agora, e desde este Abril de 2022 já estamos a desenvolver o alerta contrário.
As máscaras não vão desaparecer instantaneamente, não serão proibidas, nem mesmo aos que insistem em usá-la abaixo do queixo, mas o seu uso passará a depender do entendimento de cada um. E isso é uma excelente forma de celebrar a liberdade.
Vivemos em sociedade e aceitamos as regras como moeda de troca pelos incontáveis benefícios de a ela pertencer. Diferentes regimes definem de forma diversa o ponto de equilíbrio entre o que deve ser decidido pela polis ou pelo indivíduo, e cada um de nós terá também diferentes entendimentos dessa relação.
O debate sobre o seu uso foi acalorado e não irá terminar de imediato. Foi interessante para procurarmos novos argumentos e novos critérios para definirmos essa mesma fronteira entre o nós e os outros. Não há uma resposta nem um critério único. Antes de Abril, antes do Abril de há 48 anos, haveria certamente um critério único, inequívoco e inquestionável. Depois desse Abril, foi definido um critério, foram cometidos erros (claro, somos governados por palermas) mas podemos manifestar a nossa discordância. Afirmar que somos governados por palermas, além de ser verdade, é também uma forma de celebrar Abril. E de cara destapada.